Revista Portuguesa de Investigação Comportamental e Social 2019 Vol. 5 (2): 86-97

Portuguese Journal of Behavioral and Social Research 2019 Vol. 5 (2): 86-97

Departamento de Investigação & Desenvolvimento • Instituto Superior Miguel Torga

 

 

ARTIGO DE REVISÃO

Desfiguramento facial em contexto pediátrico: revisão integrativa da literatura

 

Desfiguramento facial em contexto pediátrico: revisão integrativa da literatura

 

 

José Mendes (1,2)

Durval Alcaidinho (3)

Maura Alcaidinho (4)

Sara Silva (3)

(1) INTELECTO – Psicologia & Investigação, Ponta Delgada, Açores, Portugal

(2) Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Humano e Social, Coimbra, Portugal

(3) Hospital Divino Espírito Santo, Ponta Delgada, Açores, Portugal

(4) Unidade de Saúde da Ilha de São Miguel, Ponta Delgada, Açores, Portugal

 

Recebido: 25/06/2019; Revisto: 09/11/2019; Aceite: 28/11/2019.

https://doi.org/10.31211/rpics.2019.5.2.151

 

 

 

ÍNDICE

RESUMO | ABSTRACT

INTRODUÇÃO

MÉTODO

RESULTADOS

DISCUSSÃO

REFERÊNCIAS

 

 

 

Resumo

 

Contexto e Objetivo: O desfiguramento facial revela-se um problema quando afeta a criança/adolescente e respetivos familiares. No entanto, apesar de o principal objetivo dos enfermeiros se focar qualidade dos cuidados de saúde, a maioria dos profissionais de saúde carece de competências no cuidado de crianças/jovens com desfiguramento facial. Desconhecidos estudos em Portugal, desenvolveu-se uma análise da literatura com o objetivo de apresentar resultados de investigação e contribuir com reflexões sobre a realização de futuros estudos da contribuição do enfermeiro perante o desfiguramento facial em crianças/jovens. Métodos: Com recurso à plataforma MeSH, validaram-se os descritores: Desfiguramento Facial; Enfermeiros; Emoções, Criança/adolescente e Pediatria; tendo-se procedido à realização de uma pesquisa individual nas bases de dados: CINAHL®; Medline; Nursing & Allied Health Collection; Cochrane Plus Collection; Cochrane Database of Systematic Reviews e MedicLatina, através dos operadores booleanos AND e NOT. Resultados: Num total de 92 publicações, considerando-se 22 duplicadas e 66 publicações não cumpriam os critérios de inclusão, considerando-se somente quatro publicações elegíveis. Discussão e Conclusões: As lesões na cabeça são consideradas as principais causas de mortalidade (trauma) e a Fissura do Lábio Palatino é o desfiguramento congénito mais comum. Contudo ambas afetam a qualidade de vida e a identidade da criança/jovem comprometendo o desenvolvimento biopsicossocial. Os enfermeiros, considerados como profissionais de primeira linha, deverão estar capacitados para aconselhar, apoiar, informar e colaborar com a equipa multidisciplinar, capacitando os pais de estratégias que permitam o acesso ao apoio emocional perante o desfiguramento facial e promovendo uma imagem corporal positiva como componente crítica do cuidar.

 

Palavras-Chave: Desfiguramento Facial; Pediatria; Enfermeiro; Criança; Adolescente.

 

 

Abstract

 

Background and Aim: The self-image can be especially disruptive when dealing with facial disfigurement. Disfigurement is a problem that not only affects the child/adolescent but also has an impact on the family and relatives as well. However, although the major goal for nurses was to improve the quality of health care, most health professionals lack skills in caring for children/young people with facial disfigurement. There have been no known studies carried out in Portugal about this issue. A systematic review of the literature was developed, aiming to present research results and contribute to reflections on the future studies of nurses' contribution to facial disfigurement in children / young people. Methods: Using the MeSH platform, the following descriptors were validated: Facial Disfigurement, Nurse; Emotions; Child / Adolescent, and Pediatrics. An individual survey was carried out in the databases: CINAHL®; Medline; Nursing & Allied Health Collection; Cochrane Plus Collection; Cochrane Database of Systematic Reviews, and MedicLatina, with boolean operator AND/NOT. Results: A total of 92 publications were counted, were 22 duplicated, and 66 did not meet the inclusion criteria, considering only four eligible publications. Discussion and Conclusions: Head injuries are considered the leading causes of mortality (trauma), and Palatine Lip Fissure is the most common congenital disfigurement. However, both affect the quality of life and the identity of the child / young, compromising the biopsychosocial development. Nurses considered as first-line professionals should be able to advise, support, inform and collaborate with the multidisciplinary team, enabling parents to strategies that allow access to emotional support in facial disfigurement, promoting a positive body image as a critical component of care.

 

Keywords: Facial Disfigurement; Pediatrics, Nurse; Child; Adolescent.

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Introdução

 

A imagem corporal alterada, outrora negligenciada, assume-se como uma característica dos cuidados de enfermagem que importa considerar (Salter, 1988). Esta autora defende que a maioria dos indivíduos com imagem corporal alterada recorre pelo menos uma vez (ou inúmeras vezes) aos cuidados de saúde, onde os enfermeiros desempenham uma abordagem primordial na avaliação e intervenção centrada no indivíduo e respetiva família. Mendes e Medeiros (2019) defendem a prevenção de situações de risco (identitário e vulnerabilidade psicológica) no desenvolvimento da imagem corporal.

O desenvolvimento da imagem corporal é influenciada desde a idade pré-escolar, reconhecendo a aparência desejável da indesejável, onde a criança desenvolve a consciência do significado das palavras “bonito” e “feio” (Hockenberry & Wilson, 2011). Estudos apontam que as crianças desde os dois/três dias de idade preferem olhar a cara de pessoas atrativas (Smolak, 2012), existindo desde a infância múltiplos fatores que influenciam a construção da imagem corporal e sua identidade como pessoa (Grogan, 2008; Smolak, 2012; Tiggemann, 2015). Salienta-se que uma criança aos cinco anos de idade, desenvolve um esquema cognitivo sobre o estereótipo de “o bonito é bom”, resultando numa imagem negativa quando a criança/adolescente se sente menos atrativa (Smolak, 2012).

A aparência facial é única, podendo exprimir características da nossa personalidade, considerada fundamental para a compreensão da construção da identidade (Mendes & Figueiras, 2013). Na visão De Sousa (2010) a face é considerada como um componente vital, tanto da personalidade como da imagem corporal, onde uma autoimagem da face comprometida pode ter um impacto no comportamento da criança/adolescente afetando o relacionamento interpessoal, social e familiar (Mendes & Figueiras, 2013).

A literatura identifica dois tipos de desfiguramento: o congénito e o adquirido (Bonanno & Choi, 2010). No entanto, a conotação negativa associada ao desfiguramento, levaram vários investigadores a sugerir a utilização de termos como diferenças visíveis (Harris, 1997; Partridge, 2003; Rumsey & Harcourt, 2012), que segundo Elks (1990), sem uma reação negativa a um desvio da face é simplesmente uma diferença visível e não um desfiguramento.

As dificuldades associadas ao desfiguramento facial (congénito ou adquirido) implicam ter em consideração: a variabilidade e visibilidade do desfiguramento facial, o estádio de desenvolvimento e as características socioculturais que afetam o ajustamento psicológico ao desfiguramento. Em todo o processo do ajustamento psicossocial ao desfiguramento, deve ter-se em consideração: o diagnóstico da doença congénita, o desenvolvimento do autoconceito da criança/adolescente, as interações sociais e comportamentais da criança/adolescente perante a reação dos outros e o tipo de tratamento (Rumsey & Harcourt, 2005).

Segundo o Modelo da Parceria de Cuidados de Anne Casey, é fundamental centrar os cuidados não só na criança, mas também na sua família, considerando que os pais são os melhores prestadores de cuidados à criança (Casey, 1993). A família desempenha uma papel fundamental no ajustamento da criança/adolescente ao desfiguramento, uma vez que a família é um modelo onde a criança adquire informação sobre os valores relativos à aparência, atitudes e comportamentos (Bellew, 2012).

O ajustamento psicológico ao desfiguramento facial é influenciado pela perceção e satisfação que a criança/adolescente sente em relação à sua aparência, às relações interpessoais, à função neuropsicológica e cognitiva (crianças com uma condição craniofacial) e aos problemas de saúde e funcionamento emocional (Feragen, 2012). Quanto mais o desfiguramento se centrar no triângulo facial (olhos e boca), mais visível é a observação por parte dos outros (Bradbury, 2012), influenciando o ajustamento psicológico ao desfiguramento facial (Mendes, 2017).

Faz-se realçar as cinco crenças que atuam nos julgamentos negativos de indivíduos com desfiguramento facial: i) a atratividade é símbolo de sucesso; ii) preconceito existente nas características faciais das minorias; iii) estereótipos sociais que dotam o rosto com traços de personalidade e caráter; iv) o desfiguramento é resultado da punição/superstições e v) a crença de que o desfiguramento causado pela doença é visto com desaprovação pela cultura do indivíduo. A maioria dos indivíduos com desfiguramento, apresentam elevados níveis de angústia, descrevendo problemas com as interações sociais, a exposição do desfiguramento e a estigmatização; exprimindo também um forte desejo de ter um profissional de saúde para lidar com as preocupações relacionadas com a sua aparência (Rumsey & Harcourt, 2012).

As preocupações com a aparência (incluindo o desfiguramento facial) têm merecido atenção na última década em Portugal, tendo-se realizado várias investigações sobre as preocupações com a aparência em indivíduos na população geral (Mendes, Figueiras, & Moss, 2016), população clínica (Alves, 2016; Mendes, Rego, Figueiras, Moss, & Alcaidinho, 2019), população com deficiência visual (Mendes, Alcaidinho, & Alcaidinho, 2019), estudantes do ensino superior (Medeiros et al., 2018; Mendes, Fraga, et al., 2018) e população idosa (Mendes, Tavares, Pires & Medeiros, 2019). Sendo desconhecidos estudos em Portugal centrados na desfiguramento facial (congénito e adquirido) em crianças/adolescentes.

A pertinência de realizar esta revisão integrativa da literatura sobre o papel do enfermeiro perante o desfiguramento facial em crianças/adolescentes, justifica-se não só pela emergência deste tema em Portugal, mas também pelo facto de recentemente, um estudo europeu, referir que a maioria dos profissionais de saúde não apresentam competências para atender efetivamente as necessidades psicossociais de crianças/adolescentes com desfiguramento (Harcourt et al., 2018; Rumsey, 2018). Estas dificuldades quanto ao desfiguramento facial na criança/jovem podem estar relacionadas com o facto de o desfiguramento facial ser considerado uma condição adversa ao desenvolvimento infantil, estando este associado a problemas comportamentais, tais como, depressão, raiva, vergonha, isolamento, entre outros (Rumsey & Harcourt, 2012) e também pelo facto de Tomsey e Alligood (2002) revelarem que muitos enfermeiros são menos capazes de comunicar clara e explicitamente à sociedade a sua conceção do serviço.

Segundo Neves, Cipriani, Meireles, Morgado e Ferreira (2017) existe a necessidade de programas de intervenção que promovam a prevenção do desenvolvimento de uma imagem corporal negativa em crianças perante o desfiguramento facial congénito ou adquirido, uma vez que na maioria das vezes, o cuidador sente-se incapaz de ajudar a criança/adolescente em gerir as emoções (raiva, nojo, tristeza) perante desafios significativos num ambiente hostil (Braaf, Ameratunga, Teague, Jowett, & Gabbe, 2016), realçando a importância dos cuidadores, ao confrontarem-se com saberes e práticas no cuidar que deveriam ser executados por enfermeiros.

Assim, a questão de investigação foi: qual a produção científica sobre as práticas de enfermagem sobre o desfiguramento facial em contexto pediátrico? Pelo que se pretendeu-se com esta revisão integrativa da literatura, explanar uma pesquisa de trabalhos científicos, contextualizando o cuidar dos enfermeiros perante o desfiguramento facial em crianças e adolescentes.

 

 

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Metodologia

 

Considerando o programa da Classificação Internacional para a Prática de Enfermagem (CIPE), revelou-se pertinente analisar a substituição das palavras “desfiguramento” ou “diferenças visíveis” por Imagem Corporal (código n.º 10003405; Autoimagem: imagem mental do próprio corpo no seu todo ou em parte; ou da aparência física do próprio) e Autoimagem (código n.º 10017776; Crença: conceito ou imagem mental de si próprio) (Ordem dos Enfermeiros, 2016).

Tomando em consideração a metodologia de pesquisa a realizar para a presente revisão integrativa da literatura, procederam-se às seguintes etapas: i) definição da questão de investigação; ii) elaboração dos critérios de elegibilidade; iii) realização de uma pesquisa nas bases de dados; iv) examinação dos estudos a considerar elegíveis; v) apreciação da qualidade metodológica dos estudos; vi) descrição dos resultados e conclusões, com elaboração de uma tabela síntese das características dos estudos considerados legíveis para a revisão integrativa da literatura (Vilelas, 2017).

Procedeu-se à validação dos descritores em inglês Facial Injury; Nurse; Emotions; Child/Adolescent; Facial Disfigurement e Pediatrics na plataforma “MeSH”, sendo o descritor “disfigurement” inadequado. Posteriormente, efetuou-se uma pesquisa individual nas bases de dados CINAHL®; Medline; Nursing & Allied Health Collection; Cochrane Plus Collection; Cochrane Database of Systematic Reviews e MedicLatina, conjugando os descritores enunciados em cinco equações de pesquisa em texto integral: [Facial Injuries AND Pediatrics AND Emotions NOT Adult], [Facial Injuries AND Pediatrics NOT Adult], [Facial Injuries AND Emotions AND Nurse NOT Adult], [Facial Injuries AND Nurse NOT Adult] e [Facial Injuries AND Pediatrics AND Nurse NOT Adult].

Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: i) a publicação possuir uma relação entre lesões na face, enfermeiros, crianças/adolescentes e pediatria; ii) ser uma publicação em língua portuguesa, inglesa, francesa ou espanhola e iii) artigos publicados em revistas de cariz científico em texto completo nos últimos cinco anos. Excluíram-se: i) publicações duplicadas; ii) estudos que não abordassem a temática relevante ao objetivo de revisão integrativa da literatura e iii) que utilizassem outros descritores que não os selecionados.

O processo de identificação e seleção dos artigos decorreu em três etapas. A primeira etapa consistiu na leitura dos títulos dos artigos identificados na pesquisa, de forma a excluir aqueles que não iam ao encontro dos critérios de inclusão previamente estabelecidos. Posteriormente, a seleção dos artigos para a continuação deste processo, foi realizada com base na leitura do resumo e, na última etapa, os artigos resultantes desta primeira análise foram analisados na íntegra, selecionando os artigos elegíveis e aplicando-se os critérios de avaliação da qualidade dos estudos, de forma a avaliar se a metodologia foi adequada e se os resultados vão ao encontro do objetivo de estudo (Vilelas, 2017).

Após a realização de todos os procedimentos anteriores, verificou-se que os artigos eram inadequados à questão de investigação, revelando-se o descritor “Disfigurement” (considerado inadequado na plataforma MeSH) fundamental à realização de uma nova pesquisa individual na base de dados. Portanto, substituiu-se o descritor “Facial Injuries” pelo descritor “Disfigurement” e alargou-se a pesquisa aos últimos dez anos.

 

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Resultados

 

A pesquisa individual nas várias bases de dados, permitiu contabilizar um total de 92 publicações, tendo-se identificado 22 publicações duplicadas. Eliminaram-se 39 publicações pela leitura do título e resumo, e eliminaram-se 27 publicações consideradas de leitura duvidosa (Figura 1). Após leitura do texto integral, consideraram-se elegíveis 2 publicações na Europa (Reino Unido) e 2 publicações na América do Norte (Estados Unidos) (Tabela 1).

 

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Figura 1. Processo de filtragem da evidência científica pesquisada nos últimos dez anos.

 

 

 

 

Tabela 1

Síntese da Evidência Encontrada

 

 

 

Autores (ano)

País

Objetivo

Conclusões

 

 

 

Bradbury (2012)

Reino Unido

Identificar as necessidades no ajustamento psicológico ao desfiguramento

A intervenção deve centrar a abordagem em três etapas fundamentais: avaliação psicológica, suporte e tratamento, devendo os profissionais de saúde conhecer os fatores psicológicos que influenciam o ajustamento ao desfiguramento. Os enfermeiros especialistas devem possuir formação específica de aconselhamento de forma a apoiar, informar o cliente e colaborar com uma equipa multidisciplinar com o objetivo de encaminhar o cliente para o melhor tratamento/terapia.

 

 

 

Nelson, Kirk, Caress, & Glenny

(2012)

Reino Unido

Compreender como os pais cuidam de crianças com fissura do lábio palatino ao longo do tratamento (FLP).

Durante toda a infância e adolescência, os pais experienciam emoções opostas devido ao compromisso sobre o cuidar dos filhos na incerteza sobre o tratamento da FLP e atitudes estigmatizantes. Os enfermeiros especialistas, devem capacitar os pais de estratégias que permitam um acesso ao apoio emocional em diferentes pontos ao longo do percurso nos cuidados da FLP.

 

 

 

Burokas (2013)

Estados Unidos

Discutir as definições, diagnóstico, tratamento da craniosinostose e apoio aos pais.

Os enfermeiros de cuidados intensivos podem melhorar o cuidado dos bebés e respetivas famílias conhecendo bem a anatomia, avaliação e intervenção cirúrgica, de forma a minimizar o impacto desta doença nos pais através de aconselhamento e coordenação de questões psicossociais. Revela-se pertinente que os enfermeiros estejam disponíveis para intervir nas preocupações que a família tem sobre o bebé com Craniossinostose.

 

 

 

Burg (2016)

Estados Unidos

Avaliar o impacto do cancro na construção de uma imagem corporal negativa em adolescentes do sexo feminino

São necessárias estratégias de avaliação e cuidados na promoção da imagem corporal positiva. Os profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros devem conhecer e reconhecer qual a melhor intervenção na promoção da imagem corporal positiva como uma parte crítica dos cuidados oncológicos.

 

 

 

 

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Discussão

 

O significado desfiguramento, tem suscitado muita discussão científica devido à sua conotação negativa (Harris, 1997; Mendes, 2017; Partridge, 2003; Rumsey & Harcourt, 2012), subsistindo uma dualidade (individual e coletiva) no sentido atribuído à imagem corporal e autoimagem (Silva, Lima, Japur, Gracia-Arnaiz, & Penaforte, 2018), existindo a necessidade de se aprofundarem reflexões acerca da conceção de corpo quando este é comprometido por uma causa congénita ou traumática. Neste sentido, o cuidar em enfermagem confronta-se com questões inerentes ao processo de desenvolvimento integral da criança/jovem (Hockenberry & Wilson, 2011), onde o enfermeiro assiste, cuida e presta cuidados específicos em resposta ao desenvolvimento da criança e do jovem (Ordem dos Enfermeiros, 2010).

O impacto das lesões traumáticas em idade pediátrica é considerado muito elevado (Linares, 2013). Quando analisado a nível mundial, a lesão e o sofrimento nos traumatismos em crianças com as demais doenças na infância (Ferraz-Torres, Belzunegui-Otano, Martínez-García, Iriarte-Cerdán, & Salgado-Reguero, 2016; Linares, 2013), as lesões na cabeça são consideradas uma das principais causas de morbilidade e mortalidade em todas as faixas etárias (Whitfield, 2009). Muitas destas lesões podem afetar a identidade do indivíduo (Alves, 2016; Mendes, 2017; Rifkin et al., 2018), devendo considerar-se o trauma pediátrico uma das chaves das preocupações da saúde publica (Ewing-Cobbs et al., 2014; Ferraz-Torres et al., 2016). Granacher (2003) defende que as crianças sobreviventes de traumas faciais moderados ou severos experienciam a curto ou longo prazo alterações na sua qualidade de vida.

As lesões mais frequentes nas crianças/adolescentes são as fraturas, seguidas de trauma e contusões cerebrais, situando-se com maior prevalência na cabeça e face (Ferraz-Torres et al., 2016). Para Cruz, Ono, Colpo e Freitas (2009) a maioria das fraturas faciais ocorrem acima dos cinco anos de idade, sendo as mais comuns a do maxilar, mandíbula e nariz.

Perante leões graves na face resultantes de malformações congénitas, doenças crónicas ou traumas, quer a família quer a equipa de enfermagem se confrontam com desafios no cuidar, uma vez que a natureza complexa desse cuidado não pertence ao quotidiano da maioria dos cuidadores (Neves & Cabral, 2009). O desfiguramento facial apresenta sérias alterações, quer psicológicas quer sociais, onde a criança/jovem com alterações visíveis na face está nitidamente diferente (Bradbury, 2012).

As crianças e adolescentes com desfiguramento facial estão sujeitas a elevados comportamentos de estigma, tais como provocações, olhar fixo, reações assustadoras e expressões de pena, sendo estes comportamentos mais comuns quando o desfiguramento facial é devido ao trauma (Masnari et al., 2012). Para Bradbury (2012) devem ser considerados três áreas principais no cuidar (avaliação psicológica, suporte social e tratamento) de crianças/jovens com desfiguramento facial, em que os enfermeiros ? devem deter formação necessária para melhor conhecer, reconhecer as necessidades psicossociais da criança/jovem e respetiva família.

O desfiguramento facial congénito mais comum é a Fissura do Lábio Palatino (FLP), descrito pela malformação na região craniofacial de recém nascidos vivos, em que o modelo lógico de atenção à criança é centrado numa perspetiva biomédica (Almeida, Chaves, Santos, & Santana, 2017). Estudos indicam que a fissura lábio palatina não afeta somente a criança/adolescente, existindo um elevado impacto nos pais/pessoa significativas (Almeida et al., 2017; Zeytinoğlu, Davey, Crerand, & Fisher, 2016), sendo o apoio emocional é considerado a pedra basilar na intervenção (Mendes, in press). Neste sentido, os enfermeiros devem considerar a intervenção emocional primordial, capacitando os pais nos primeiros 18 meses ou mais da vida de uma criança com a FLP. Para Nelson, Kirk, Caress e Glenny (2012), os enfermeiros devem proporcionar aos pais a oportunidade de expressar os seus sentimentos quando a presença de um desfiguramento facial congénito dos seus filhos.

Além da Fissura do Lábio Palatino, existem outras patologias que causam desfiguramento, nomeadamente, a Craniossinostose (uma anomalia decorrente da fusão prematura das suturas cranianas), que além de exigir do enfermeiro maior capacitação no aconselhamento aos pais, deve providenciar um cuidar holístico que integre os cuidados médicos, cirúrgicos e genéticos. Os enfermeiros devem prestar apoio antes da cirurgia, auxiliando a coordenação das consultas e abordando questões do desenvolvimento e psicossociais (Burokas, 2013). O nascimento de uma criança com desfiguramento facial congénito pode provocar uma série de respostas que podem comprometer o desenvolvimento da criança, por exemplo, os pais negligenciarem os cuidados, desejarem uma morte súbita da criança ou interpretarem o desfiguramento facial congénito como um castigo (Skinner, 2017).

A complexidade envolvida no desfiguramento facial congénito ou adquirido (Rumsey & Harcourt, 2012) pode comprometer a responsabilidade dos pais na prestação de cuidados, uma vez que estes necessitam de um apoio dos profissionais de saúde na prestação de cuidados. Assim, quando existe um grau de dependência durante o internamento, os enfermeiros devem capacitar estes cuidadores de estratégias essenciais no cuidar a nível ambulatório (Landeiro, Martins, & Peres, 2016). Na opinião de Burokas (2013) os enfermeiros devem estar disponíveis para ouvir as preocupações que a família/pessoa significativa têm sobre as crianças/jovens.

Recentemente, um estudo de Burg (2016) recomenda que os enfermeiros se capacitem de avaliar as perceções dos adolescentes sobre a imagem corporal, auxiliando-os na exploração de atividades sociais e estratégias de coping para lidar com o desfiguramento facial. Os enfermeiros devem estar conscientes dos fatores associados à construção da imagem corporal negativa (Burg, 2016), autoconsciência da aparência (Mendes, Fraga, et al., 2018) e quais as consequências ao nível físico, psicológico e relacionamento interpessoal (Burg, 2016).

Muitas vezes, o excesso de responsabilidade atribuída às funções do enfermeiro podem fazer com que este apresente um desgaste psíquico e emocional (Araújo, 2016). Contudo, Cecil e Glass (2015) defendem existir uma relação generalizada entre a regulação e a proteção emocional na prestação de cuidados, exigindo dos enfermeiros um forte senso de consciência interpessoal e um compromisso com a saúde emocional de forma a lidar com as complexas interações entre o enfermeiro e o cliente.

 

Considerações finais

Realizada a presente revisão integrativa da literatura, mantiveram-se desconhecidos estudos que focassem diretamente a intervenção do enfermeiro perante a o desfiguramento facial em crianças e adolescentes em Portugal.

O desfiguramento facial compromete o desenvolvimento da criança/adolescente (Hockenberry & Wilson, 2011; Rumsey & Harcourt, 2012; Smolak, 2012), exigindo da enfermagem pediátrica o compromisso de integrar o universo da família, e em conjunto prestar o cuidado às crianças/adolescentes (Neves & Cabral, 2009). A intervenção dos enfermeiros pode minimizar o stress dos pais com crianças em unidades de saúde pediátrica, fornecendo informação honesta e direta quando o acesso é restrito à família (Burokas, 2013).

Em Portugal são realizadas cerca de quarenta mil médias/grandes cirurgias reconstrutivas (Mendes & Figueiras, 2013), que apesar de ser desconhecida a sua etiologia, considera-se que por cada cem mil habitantes em Portugal, cento e trinta e sete pessoas sofrem de lesões na cabeça (Whitfield, 2009). De realçar que o trabalho multidisciplinar no desfiguramento facial adquirido ou congénito é consensual (Almeida et al., 2017; Baker, Owens, Stern, & Willmot, 2009; Braaf et al., 2016; Ewing-Cobbs et al., 2014; Ferraz-Torres et al., 2016; Goenka, Aziz, Riley, & Vassallo, 2014; Joseph et al., 2014; Kuhn et al., 2012; Linares, 2013; Masnari et al., 2012; Mendes, 2017; Zeytinoğlu et al., 2016), existindo a necessidade de programas de formação que permitam uma prevenção primária, no intuito de reduzir o impacto físico e psicológico da imagem corporal comprometida.

Perante a evolução tecnológica, sugerem-se estratégias inovadoras educacionais que capacitem os indivíduos de conhecimentos e informações que se adaptem às suas necessidades (Landeiro et al., 2016). Para Garrisi, Janciute e Johanssen (2018) uma maior autorrepresentação do desfiguramento facial nos meios de comunicação social possibilita uma alternativa na abordagem da imagem corporal alterada e promove práticas editoriais que permitem a inclusão do desfiguramento facial adquirido no quotidiano social.

Como limitações, consideramos o número reduzido de artigos científicos que deram resposta à questão de investigação, enaltecendo-se maior investigação sobre a intervenção dos enfermeiros no cuidar de crianças/jovens com desfiguramento facial, uma vez que estes além de profissionais, são pessoas que muitas vezes criam barreiras emocionais de forma a que os seus problemas pessoais não sejam transferidos para o cliente. A presente revisão de literatura revela também a necessidade de os enfermeiros frequentarem formações específicas que os capacitem na resposta ao cuidar da criança/adolescente e respetiva família perante um desfiguramento facial. Por fim, releva-se também adequado, maior reflexão sobre os descritores existentes na abordagem da pessoa com imagem corporal alterada centrada na face.

 

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Referências

 

 

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