Revista Portuguesa de Investigação Comportamental e Social 2019 Vol. 5 (2): 1-18
Portuguese Journal of
Behavioral and Social Research 2019 Vol. 5 (2): 1-18
Departamento de Investigação & Desenvolvimento • Instituto
Superior Miguel Torga
ARTIGO ORIGINAL
Efeitos da vergonha em sintomas depressivos
em pessoas com e sem doença física crónica: Os papéis mediadores da
autocompaixão e da ação comprometida
The effect of shame on depressive symptoms in people with and without
chronic physical disease: Exploring the mediator role of self-compassion and
committed action
Daniela
Veiga (1)
Inês A.
Trindade (1)
Cláudia
Ferreira (1)
(1) CINEICC – Center for Research in Neuropsychology
and Cognitive and Behavioral Intervention, Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal
Recebido: 19/07/2019; Revisto: 20/09/2019; Aceite: 21/10/2019.
https://doi.org/10.31211/rpics.2019.5.2.153
Contexto: O presente estudo teve como objetivo testar o potencial efeito
mediador da autocompaixão e da ação comprometida na relação entre vergonha e
sintomatologia depressiva, em pessoas sem e com diagnóstico de doença física
crónica. Adicionalmente, foram exploradas as diferenças em relação a essas
variáveis entre os dois grupos. Métodos: A amostra foi constituída por 453
participantes (223 com e 230 sem diagnóstico de doença física crónica), os
quais responderam numa plataforma online
a um protocolo de medidas de autorrelato de vergonha, autocompaixão, ação
comprometida e sintomas depressivos. Resultados:
Os participantes com diagnóstico de doença crónica apresentaram níveis
significativamente (p < 0,05) superiores de vergonha e de
sintomatologia depressiva, e níveis inferiores de ação comprometida,
comparativamente aos participantes sem doença física crónica. Contudo, não
foram encontradas diferenças significativas entre os dois grupos relativamente
às competências autocompassivas. As análises de correlação revelaram que a
vergonha se associa negativamente à autocompaixão e ação comprometida e
positivamente á sintomatologia depressiva, tanto no grupo sem como no grupo com
diagnóstico de doença física crónica. Os resultados da path analysis indicaram que sentimentos de
vergonha têm um impacto significativo, explicando 41% da variância da
sintomatologia depressiva, parcialmente via menores níveis de autocompaixão e
de ação comprometida. Os resultados da análise multigrupos demonstraram que o
modelo testado é plausível nos dois grupos em estudo. Conclusões: Este estudo parece fornecer importantes
contributos para a compreensão do impacto protetor das competências
autocompassivas e da adoção de ações comprometidas para a saúde mental, tanto
para pessoas sem como com diagnóstico de doença física crónica. De facto, os
resultados sugerem que estes processos de regulação emocional são importantes
mecanismos mediadores da relação entre vergonha e sintomas depressivos.
Finalmente, estes dados parecem suportar o desenvolvimento de abordagens mais
eficazes para a promoção da saúde psicológica para pessoas sem e com doença
crónica.
Palavras-Chave: Autocompaixão; Ação comprometida; Doença
crónica; Sintomatologia depressiva; Vergonha.
Aims: The current study aimed
at examining the potential mediator role of self-compassion and committed
action on the link between shame and depressive symptomatology in people with
and without a diagnosis of chronic disease. Additionally, differences between
these two groups were explored regarding these variables. Method: The sample included 453
participants (223 with chronic disease and 230 without a diagnosis of chronic
disease), who completed an online survey. Results: Participants with a diagnosis of chronic
disease significantly (p < 0.05) presented higher levels of shame
feelings and depressive symptoms, and lower levels of committed action than
participants without a chronic disease. Nonetheless, no significant differences
in self-compassion abilities were found between the groups. Correlational
results revealed that shame was negatively associated with self-compassion and
committed action, and positively with depressive symptomatology, in both
groups. Path analysis results indicated that shame feelings have a significant
impact on depressive symptomatology (explaining 41% of its variance), mediated
through decreased self-compassion and committed action. A multi-group analysis
revealed that this model was invariant between study groups. Conclusions: This study seems to
provide important contributions to understand the protective impact of
self-compassionate abilities and the adoption in committed action in mental
health, both for people with or without a chronic disease diagnosis. Indeed,
these processes appear to be important mediating mechanisms that seem to
minimize the negative effects of shame on depressive symptomatology. These
findings seem to support the development of more effective approaches for the
promotion of psychological health for people with or without a chronic disease
diagnosis.
Keywords: Committed action; Chronic disease; Depressive symptomatology; Shame; Self-compassion.
Vasta literatura tem vindo a enfatizar o
papel da autocompaixão enquanto estratégia de regulação emocional
particularmente útil, sublinhando o seu papel protetor na saúde mental (e.g.,
associando-se à diminuição dos sintomas psicopatológicos) e qualidade de vida,
tanto em amostras de doentes crónicos (Pinto-Gouveia, Duarte, Matos, & Fráguas, 2013; Sirois & Hirsch, 2019; Sirois
& Rowse, 2016) como em amostras da população geral (e.g., Körner et al., 2015; Neff, 2003b). A autocompaixão pode ser compreendida como a capacidade do
indivíduo de ser compreensivo e caloroso relativamente a experiências e aspetos
do eu percecionados como indesejáveis ou negativos, os quais são percecionados
como parte da experiência humana comum e numa atitude mindful (Neff,
2003b).
Esta estratégia de regulação emocional adaptativa não envolve o evitamento de
insucessos, inadequações e falhas pessoais, nem implica autocriticismo e
julgamentos severos; mas sim uma atitude de aceitação, bondade e compreensão
perante contextos de dor e sofrimento (e.g., Folkman
& Moskowitz, 2000; Neff, 2003a). Vários estudos apontam
que maiores níveis de autocompaixão se associam a menores níveis de ansiedade,
ruminação e sintomas depressivos (e.g., Costa & Pinto-Gouveia, 2011; Körner et al., 2015; MacBeth & Gumley, 2012; Neff, 2003a,
2003b, 2009). Por outro lado, a
literatura parece demonstrar que menores níveis de autocompaixão constituem um
fator de vulnerabilidade para o desenvolvimento e manutenção de sintomas
psicopatológicos, nomeadamente de sintomatologia depressiva (e.g., Körner et al., 2015; Krieger, Altenstein,
Baetting, Doering, & Holtforth, 2013). Ainda, em
estudos com amostras de doentes crónicos, a autocompaixão é apontada como tendo
um papel fundamental na promoção de comportamentos de saúde (Sirois & Hirsch, 2019; Sirois & Rowse, 2016).
Adicionalmente, a literatura parece demonstrar que competências
autocompassivas podem ser um antídoto face ao impacto negativo das experiências
de vergonha no bem-estar psicológico dos indivíduos (e.g., Benda, Kadlečík,
& Loskotová, 2018;
Ferreira, Pinto-Gouveia, & Duarte, 2013; Gilbert
& Procter, 2006; Zhang et al., 2018). Embora esta
relação entre autocompaixão e vergonha esteja bem documentada para diversas
amostras (e.g., população geral, doentes depressivos), em amostras de doentes
crónicos encontra-se escassamente estudada. Contudo, um estudo recente com uma
amostra de doentes com doença inflamatória intestinal de Trindade, Ferreira e
Pinto-Gouveia (2017a) demonstra que a vergonha
associada à doença crónica (tal como à sua sintomatologia ou consequências dos
tratamentos) apresenta uma associação negativa com competências
autocompassivas.
A vergonha tem sido definida como uma emoção dolorosa a qual
funciona como uma resposta defensiva ou como um sinal de alerta perante o risco
de ser criticado, diminuído e excluído pelo grupo social (Gilbert, 1998, 2002). Gilbert (1998, 2007) sugere que existem
duas dimensões na experiência de vergonha: a vergonha externa, cujo foco de
atenção se prende com a perceção de que se existe negativamente na mente do
outro (i.e., a perceção que os outros o veem como inadequado, defeituoso,
inferior e indesejado); e a vergonha interna que se relaciona com a perceção
negativa face a atributos e comportamentos pessoais (i.e., associa-se a experiências
de autodesvalorização, inadequação, isolamento e
vazio). Estes dois tipos de vergonha ativam uma série de respostas defensivas
(e.g., submissão na vergonha externa e autojulgamento na vergonha interna) com
o objetivo de esconder ou corrigir características e atitudes avaliadas como
negativas e, assim, se proteger da crítica e/ou a rejeição dos outros (Gilbert,
1998, 2002; Gilbert & Irons, 2005, 2009). No entanto, vários
estudos têm demonstrado o efeito paradoxal da vergonha, evidenciando a
associação entre elevados níveis de vergonha e uma vasta de sintomas
psicopatológicos, nomeadamente sintomatologia depressiva (e.g., Gilbert, 2000;
Kim, Thibodeau, & Jorgensen,
2011;
Pinto-Gouveia & Matos, 2011; Trindade, Marta-Simões, Ferreira, &
Pinto-Gouveia, 2018a).
Especificamente, os
indivíduos com doença crónica parecem apresentar uma maior propensão a
experienciar sentimentos de vergonha, associados a experiências relacionadas à
doença e sua sintomatologia ou consequências dos tratamentos (e.g., Casati, Toner, De Rooy, Drossman, & Maunder, 2000; Trindade, Ferreira, & Pinto-Gouveia, 2017b; Trindade et al., 2018a). Adicionalmente, investigação prévia com doentes crónicos tem
demonstrado a relevância desta emoção, salientando o seu impacto negativo no
funcionamento e bem-estar psicológico dos indivíduos (e.g., Trindade et al., 2017a, 2017b, 2018a; Trindade, Duarte, Ferreira, Coutinho, &
Pinto-Gouveia, 2018). Embora estudos em amostras da
população geral tenham vindo a demonstrar a forte relação entre sentimentos
gerais de vergonha (i.e., não específicos em relação a conteúdo, por exemplo
relacionado com uma doença) e diversos indicadores de psicopatologia (e.g., Kim
et al., 2011; Matos & Pinto-Gouveia, 2010;
Pinto-Gouveia & Matos, 2011) e a menores níveis de ação
comprometida (Trindade, Marta-Simões, Ferreira, & Pinto-Gouveia, 2018b), o estudo acerca da relação entre ação
comprometida e sentimentos gerais de vergonha estão claramente menos
explorados na população com doença crónica.
A ação comprometida é considerada um dos processos chave do modelo
de flexibilidade psicológica da Terapia de Aceitação e Compromisso e
caracteriza-se pela habilidade em assumir uma gama ampla de ações efetivas,
guiadas pelos valores de vida (Hayes, Luoma, Bond, Masuda, & Lillis, 2006). Esses comportamentos
ativamente escolhidos (Hayes et al., 2006; Hayes, Pistorello, & Levin, 2012) são caracterizados como flexíveis e persistentes,
capazes de incorporar angústia, dor, fracasso e desconforto que possam estar
implicados no processo de busca de valores (McCracken,
2013). Embora tenha sido pouco investigada,
particularmente em amostras específicas (e.g., em doentes crónicos), alguns
estudos exploraram os possíveis efeitos positivos de agir de acordo com os
valores de vida escolhidos como preditor de saúde mental e física, tanto em
amostras da população geral como em amostras clínicas (Galán
et al., 2019; McCracken, 2013; McCracken, Chilcot, & Norton, 2014; Michelson, Lee, Orsillo, & Roemer, 2011; Trindade et al., 2018b; Trompetter et al., 2013). A ação comprometida parece atenuar o efeito da
vergonha relacionada à doença em relação a piores indicadores de saúde mental
(Trindade et al., 2017b; Trindade et al., 2018b). De facto, dados empíricos recentes, num grupo
de pessoas sem doença crónica e num grupo de mulheres com cancro da mama,
parecem indicar a associação negativa da ação comprometida com a vergonha e
sintomas depressivos, o que parece demonstrar que permanecer em ações guiadas
pelos valores pessoais tem um efeito protetor no impacto da vergonha e na
manifestação de sintomas depressivos (Trindade et al., 2018b).
Em suma, a população com doença física crónica, devido a maior
propensão para a vivência de experiências de vergonha (e.g., Casati et al., 2000; Trindade et
al., 2017b, 2018a) e a
maior sintomatologia depressiva reportada (Pinto-Gouveia et al., 2013), parece ser uma população em que os processos
de autocompaixão e ação comprometida poderão assumir um papel particularmente
importante para a promoção da sua saúde mental.
Dada a escassez de estudos comparativos entre população com e sem
doença física crónica, um dos objetivos deste trabalho foi testar diferenças
entre sentimentos de vergonha, autocompaixão, ação comprometida e
sintomatologia depressiva entre dois grupos. Adicionalmente, este estudo teve
como objetivo principal testar o potencial papel mediador da autocompaixão e
ação comprometida na relação entre vergonha e sintomas depressivos. Foi hipotetizado que o efeito negativo da vergonha nos sintomas
depressivos é mediado por menores níveis de autocompaixão e de comprometimento
com ações congruentes com valores de vida. Hipotetizámos,
ainda, que estas relações são universais (Coutinho, Trindade, & Ferreira, 2019; Trindade et al., 2018b),
esperando-se que o modelo testado seja invariante nos dois grupos em estudo.
Participantes
A amostra deste estudo foi composta por
453 participantes adultos, divididos em dois grupos: grupo com diagnóstico de
doença física crónica (n = 223) e
grupo sem diagnóstico de doença física crónica (n = 230). O grupo com doença crónica, com idades compreendidas
entre os 18 e 65 anos (M = 38,53; DP = 11,82), inclui 196 mulheres e 27
homens. Em relação à escolaridade, este grupo apresentou uma média de 13,97 (DP = 2.88) anos de escolaridade. Dos
participantes sem doença crónica, 160 eram mulheres e 70 homens, com idades a variar
entre os 18 e 62 anos (M = 31,30; DP = 10,51), com uma média de 14,28 (DP = 2,60) anos de escolaridade. Os dois
grupos apresentaram diferenças significativas em relação à idade (t(451) = -6,89; p < 0,001), com o grupo com doença
crónica a apresentar uma idade média superior comparativamente ao grupo sem
doença crónica, e ao género (χ2(1) = 22,60, p < 0,001), com o grupo com doença
crónica a apresentar menos homens e mais mulheres em relação ao grupo sem
doença crónica. Além disso, no que respeita ao estado civil, também foram
encontradas diferenças significativas em ambos os grupos (χ2(4) = 22,80, p < 0,001), com a maioria dos participantes do grupo com doença
crónica casados (51,1%), enquanto que no grupo sem doença crónica a maioria era
solteira (60,9%). Em relação aos anos de escolaridade não foram encontradas
diferenças significativas em ambos os grupos (t(451) = 1,22; p =
0,224).
Dos 223 participantes do grupo com
doença crónica, 173 (77,6%) reportaram ter apenas uma doença crónica e 50
(22.4%) participantes reportaram ter diagnóstico de duas ou mais doenças
crónicas. Das 74 doenças crónicas presentes na amostra, as cinco doenças mais
prevalentes neste grupo foram lúpus (33,63%), fibromialgia (10,76%),
endometriose (9,87%), asma (8,07%) e síndrome de Sjorgen
(6,28%). A Tabela 1 apresenta a frequência de doença
crónica, definida a partir de cada um dos sistemas do organismo humano envolvidos,
reportada pelos participantes do grupo com diagnóstico de doença física crónica.
|
Caracterização do Grupo de Participantes com Doença
Crónica por Sistema (n = 223) |
|
||
|
Sistema |
n |
% |
|
|
Reumatológicas e musculoesqueléticas |
162 |
72,64 |
|
|
Respiratórias |
32 |
14,35 |
|
|
Endócrinas
e hematológicas |
27 |
12,11 |
|
|
Ginecológicas |
23 |
10,31 |
|
|
Renais |
18 |
8,07 |
|
|
Gastrointestinais |
17 |
7,62 |
|
|
Dermatológicas |
12 |
5,38 |
|
|
Cardiovasculares |
9 |
4,04 |
|
|
Neoplásicas |
3 |
1,35 |
|
|
Neurológicas |
2 |
0,90 |
|
|
Neuromusculares |
2 |
0,90 |
|
|
Oftalmológicas |
1 |
0,45 |
|
|
|
|
|
|
Medidas
Escala de Vergonha Externa
e Interna (EISS); Ferreira, Moura-Ramos, Matos, &
Galhardo (2018). A EISS avalia numa única medida de
experiência de vergonha externa e interna. Esta escala é composta por oito
itens, gerados para medir os quatro domínios centrais da experiência de
vergonha, e presentes quer na vergonha externa quanto interna: inferioridade/inadequação,
senso de exclusão, inutilidade/vazio e crítica/julgamento. Para avaliar cada um
destes domínios existe um item, num total de quatro itens para uma dimensão
externa (e.g., “Sinto que os outros me veem como desinteressante”) e dimensão interna
da vergonha (e.g., “Sinto que sou diferente e inferior aos outros”). Os
participantes devem responder a cada item através de uma escala de 5 pontos (0
= “Nunca” a 4 = “Sempre”). As pontuações variam entre 0 e 32 pontos, sendo os
valores mais elevados indicadores de maiores níveis de vergonha. No presente
estudo foi unicamente usada a pontuação total da escala. A versão original da
escala apresenta boas qualidades psicométricas, com os valores de alfas de
Cronbach para a escala total de 0,89, respetivamente (Ferreira et al., 2018).
Escala de Auto-Compaixão (Self-Compassion Scale (SELFCS); Neff (2003b); versão portuguesa de
Castilho & Pinto-Gouveia (2011)]. Esta medida de
autorresposta, constituída por 26 itens, visa avaliar a autocompaixão, através
de seis dimensões: subescalas Calor/Compreensão (e.g., “Sou tolerante com os
meus erros e inadequações”); Humanidade Comum (e.g., “Tento ver os meus erros e
falhas como parte da condição humana”); Mindfulness
(e.g., “Quando alguma coisa dolorosa acontece tento ter uma visão equilibrada
da situação”); Autojulgamento (e.g., “Desaprovo-me e faço julgamentos acerca
dos meus erros e inadequações”), o Isolamento (e.g., “Quando falho nalguma
coisa importante para mim tendo a sentir-me sozinho(a) no meu fracasso”) e Sobre-Identificação (e.g., “Quando alguma coisa dolorosa
acontece tendo a exagerar a sua importância”). A resposta aos itens é realizada
através de uma escala de Likert de 5 pontos (1 = “quase nunca” a 5 = “quase
sempre”). Os valores de consistência interna revelaram-se bons, tanto na versão
original como na versão portuguesa (α de Cronbach = 0,92 e 0,89, respetivamente) (Castilho &
Pinto-Gouveia, 2011; Neff, 2003b). No estudo foi utilizado o compósito de
autocompaixão, constituído pelas três dimensões positivas desta medida.
Relativamente ao compósito de autocompaixão as pontuações variam entre 13 a 65
pontos, traduzindo os valores mais altos níveis superiores de autocompaixão.
Questionário de Ação
Comprometida [Commited Action Questionnaire (CAQ-8); McCracken
et al. (2014); versão portuguesa de Trindade et al.
(2018b)]. O CAQ-8 é um instrumento de autorresposta,
constituído por 8 itens, que avalia a ação comprometida. Este questionário é
composto por uma subescala positiva (e.g., “Prefiro mudar a forma de lidar com
um objetivo do que desistir”) e uma subescala negativa (e.g., “Acho difícil
continuar uma atividade a não ser que sinta que é bem-sucedida”), cada uma com
4 itens. É solicitado aos participantes que respondam numa escala de 7 pontos a
cada item (0 = “Nunca verdadeiro” a 6 = “Sempre verdadeiro”). No presente
estudo foi utilizada a pontuação total da escala, a qual pode variar entre 0 a
48 pontos. Valores mais altos nesta medida revelam maior adoção de ação
comprometida. No que respeita à consistência interna, esta medida apresentou
alfas de Cronbach de 0,87 na versão original (McCracken
et al., 2014) e de 0,86 e de 0,79 na versão
portuguesa, num grupo de pessoas sem doença crónica e num grupo de mulheres com
carcinoma da mama, respetivamente (Trindade et al., 2018b).
Escalas de Ansiedade,
Depressão e Stress [Depression Anxiety Stress Scale (DASS-21);
Lovibond & Lovibond (1995); versão portuguesa de Pais-Ribeiro, Honrado, &
Leal (2004)]. A DASS-21 é uma medida de
autorresposta que avalia sintomas emocionais negativos, através de três
subescalas: depressão, ansiedade e stress, com sete itens cada. É solicitado
aos sujeitos que respondam se a cada afirmação de acordo com a sua ocorrência
durante a semana anterior, numa escala tipo Likert de 4 pontos (0 = “Não se
aplicou nada a mim” a 3 = “Aplicou-se a mim a maior parte das vezes”). No
presente estudo, apenas a subescala de depressão foi considerada, a qual pode
compreender valores entre 0 a 21 (correspondendo valores mais elevados a maior
severidade da sintomatologia depressiva). Na versão original, a consistência interna
nesta subescala foi de 0,88 (Lovibond & Lovibond, 1995) e de 0,85 na
versão portuguesa (Pais-Ribeiro et al., 2004).
Os valores de consistência interna no
presente estudo de todas as escalas mencionadas encontram-se descritas na Tabela 2.
Procedimento
O presente estudo faz parte integrante
de um projeto I&D sobre os diferentes processos de regulação emocional e
qualidade de vida, em amostras de indivíduos com diagnóstico de doença física
crónica. Todos os requisitos éticos e deontológicos inerentes à investigação
científica em Psicologia foram respeitados, nomeadamente na recolha da amostra
e no tratamento de dados.
Depois da obtenção de autorização (com o
número 13/2016) por parte da Comissão de Ética da instituição de ensino
superior envolvida, procedeu-se à recolha de amostra através da rede social Facebook e por
via e-mail, através do método de amostragem exponencial não-discriminante de
bola-de-neve. Simultaneamente, foram contactadas 32
Associações Portuguesas de doentes com doença crónica e dessas sete aceitaram
colaborar (e.g., Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose,
Associação Nacional de Fibrose Quística,
Associação Portuguesa de Insuficientes Renais), divulgando
o estudo entre os seus membros registados como doentes (através de listas de
dados pré-existentes) ou através de redes sociais. O convite para a participação no
estudo incluía um link que
direcionava os participantes para a versão online
do questionário, bem como para informações sobre o objetivo, procedimentos
e critérios de inclusão na investigação (pessoas com idades compreendidas entre
os 18 e 65 anos de idade). A todos os participantes foi solicitado que
autorizassem a sua colaboração no estudo através de consentimento informado, e
foi assegurado o caráter voluntário da sua participação, bem como o anonimato e
confidencialidade dos dados obtidos.
Os questionários de
autorresposta continham uma primeira parte de recolha de dados biográficos, na
qual se questionava a existência de um (ou mais) diagnóstico(s) prévio(s) de
doença física crónica. No caso de a resposta a esta questão ser afirmativa,
os participantes eram direcionados para um conjunto de questões abertas
relacionadas com a caracterização e com o impacto da doença (e.g.,
identificação do diagnóstico, tempo desde o diagnóstico, tipo de tratamento).
A amostra inicial foi constituída por
471 participantes (239 com doença física crónica e 232 sem diagnóstico de
doença física crónica), com idades compreendidas entre os 17 e os 79 anos.
Contudo, foram excluídos 18 participantes desta amostra: 16 participantes que
integravam o grupo de doentes crónicos (14 devido ao critério da idade, i.e.,
por indicarem idades superiores a 65 anos; e os restantes dois por uma resposta
inespecífica em relação à identificação da doença
crónica e um por reportar doença psiquiátrica, i.e., perturbação bipolar) e
dois participantes do grupo de pessoas sem diagnóstico de doença crónica, um
por reportar uma idade inferior a 18 anos e outro por ter afirmado não aceitar
participar na investigação, após leitura do consentimento informado.
Estratégia Analítica
A análise de dados foi realizada com
recurso ao software IBM SPSS Statistics 22.0 do SPSS (SPSS IBM) e ao AMOS 22 (Arbuckle, 2013).
Foram realizadas análises estatísticas
descritivas (médias e desvios-padrão), de forma a explorar as características
dos grupos nas variáveis em estudo. Para explorar as diferenças entre os grupos
em relação às variáveis estudadas, foram realizadas análises independentes do
teste t de Student. Seguidamente, foram efetuadas análises de correlação de
Pearson de forma a compreender as associações entre os diversos constructos da
presente investigação. As magnitudes dos resultados foram discutidas com base
nas recomendações de Cohen, considerando-se de magnitude fraca correlações
inferiores a 0,30, moderada entre 0,30 e 0,49 e magnitudes fortes iguais ou
superiores a 0,50, para um nível de significância de 0,05 (Cohen, Cohen, West,
& Aiken, 2003).
Através do software AMOS 22 foram conduzidas path analysis, para testar um modelo de
mediação no qual se hipotetiza que o efeito da
vergonha (EISS; variável exógena) na sintomatologia depressiva (DASS-21-DEP;
variável endógena) é mediado pelo efeito mediador da autocompaixão e da ação
comprometida (SELFC-AC; CAQ-8; variáveis endógenas mediadoras) (Kline, 2005). Para testar a
significância dos coeficientes da path e para calcular o modelo estatístico foi utilizado o método
de Máxima Verossimilhança. Além disso, foram utilizados uma série de testes que
visam calcular a qualidade do ajustamento do modelo: o Qui-Quadrado (χ2), que revela um bom ajustamento do modelo quando é
não significativo; o Índice de Ajustamento Comparativo (Comparative
Fit Index; CFI) e o
Índice de Tucker Lewis (Tucker
Lewis Index; TLI), cujos valores superiores a
0,95 são considerados como evidência de um bom ajuste; e Raiz do Erro
Quadrático Médio de Aproximação (Root-Mean Square Error of Approximation; RMSEA) cujos valores inferiores a
0,06 indicam um bom ajustamento (Hu & Bentler, 1999). A partir de bootstrapping (com 5000 amostras) foram testados os efeitos
diretos, indiretos e totais estabelecidos entre as variáveis, com intervalo de
confiança (IC) corrigido de 95% (bias-corrected confidence intervals). Nesta
análise, quando o intervalo de confiança não inclui o zero os efeitos são
considerados estatisticamente significativos (Kline, 2005).
Por fim, com o objetivo de verificar se
existem diferenças significativas no modelo final testado entre os dois grupos
em comparação, foi realizada uma análise multigrupos. Em primeiro, com o
objetivo de determinar se o modelo era viável, o modelo hipotetizado
foi testado na amostra total, com o grupo com e sem doença crónica combinados (N = 453). Para ambos os grupos, o ajuste
do modelo foi analisado separadamente. Seguidamente, foi estimado o modelo não
restrito (i.e., modelo em que os parâmetros podem variar entre os grupos) e as
diferenças nas paths significativas e não significativas entre os dois
grupos em comparação foram analisadas. O modelo totalmente restrito (i.e.,
modelo em que os parâmetros são constrangidos para serem iguais entre os
grupos) foi, igualmente, analisado. Estes dois modelos, não restrito e
totalmente restrito foram comparados através do teste de diferença do
qui-quadrado. Por último, foram calculadas as diferenças no rácio crítico (z), no sentido de se verificar a
significância estatística das diferenças entre ambos os grupos (Byrne, 2010; Kline,
2005; Tabachnick & Fidell, 2007).
Estatística Descritiva e de Correlações
Os resultados dos
testes t revelaram diferenças
significativas entre os grupos (grupo com e sem diagnóstico de doença física
crónica) em relação à vergonha, ação comprometida e sintomatologia depressiva.
O grupo com doença crónica apresentou níveis mais elevados de vergonha e sintomatologia
depressiva e menores níveis de ação comprometida, comparativamente ao grupo sem
doença crónica. Por outro lado, em relação à autocompaixão não foram
encontradas diferenças significativas entre os grupos (Tabela
2).
|
Alfas
de Cronbach (α), Médias (M) e
Desvio-Padrão (DP) e Diferenças (t de Student) das Variáveis em Estudo por
Grupo de Participantes com Doença Crónica (n = 223) e Grupo sem Diagnóstico
de Doença Crónica (n = 230) |
|
|||||||||
|
|
Grupo com doença crónica |
Grupo sem doença crónica |
t |
gl |
p |
|
||||
|
α |
M |
DP |
α |
M |
DP |
|
||||
|
EISS |
0,90 |
10,53 |
6,39 |
0,89 |
8,58 |
5,50 |
-3,47 |
436,94 |
0,001 |
|
|
SELF-AC |
0,89 |
3,19 |
0,67 |
0,92 |
3,24 |
0,71 |
0,69 |
451 |
0,491 |
|
|
CAQ-8 |
0,80 |
30,35 |
8,02 |
0,81 |
32,28 |
7,43 |
2,65 |
451 |
0,008 |
|
|
DASS-21-DEP |
0,92 |
6,03 |
5,79 |
0,93 |
4,34 |
5,41 |
-3,20 |
446,55 |
0,001 |
|
|
Nota. EISS = Escala de
Vergonha Externa e Interna; SELFC-AC = Escala de Autocompaixão [dimensão
autocompaixão (AC)]; CAQ-8 = Questionário de Ação Comprometida; DASS-21-DEP =
Escala de Ansiedade, Depressão e Stress [Dimensão depressão (DEP)]. M = Média; DP =
Desvio-Padrão; t = Teste t de Student; gl = Graus de liberdade; p = Nível de
significância. *p
< 0,05; **p < 0,01; ***p < 0,001. |
|
Os resultados das análises de correlação de
Pearson (Tabela 3) permitiram observar que, para ambos os grupos (com e sem
doença física crónica), tanto o género como a idade não apresentaram
associações significativas com nenhuma das variáveis em estudo, exceto a
relação entre idade e autocompaixão, no grupo com doença crónica, com a qual
revelou uma associação positiva e fraca. A vergonha
associou-se negativamente com a autocompaixão e com a ação comprometida, em
ambos os grupos, com magnitudes de moderadas a altas. Por outro lado, tanto
para o grupo com doença como para o grupo sem doença crónica, a vergonha
apresentou uma correlação significativa, positiva e com uma magnitude alta com
a depressão. Por sua vez, em ambos os grupos, a autocompaixão revelou-se positiva
e moderadamente associada com ação comprometida e negativamente correlacionada
com a depressão. Foi ainda possível verificar que a ação comprometida revelou
uma associação negativa e alta com a sintomatologia depressiva, tanto no grupo
com doença crónica como no grupo sem doença crónica.
|
Tabela 3 Correlações
de Pearson Entre as Variáveis Estudadas para Grupo com Doença Crónica (n =
223) e para Grupo sem Diagnóstico de Doença Crónica (n = 230) |
|
|||||||
|
|
|
Grupo sem diagnóstico de doença
crónica |
|
|||||
|
|
Medidas |
Género |
Idade |
EISS |
SELFC-AC |
CAQ-8 |
DASS-21-DEP |
|
|
Grupo com doença crónica |
Género |
— |
-0,09 |
0,03 |
-0,03 |
-0,00 |
0,00 |
|
|
Idade |
-0,01 |
— |
-0,05 |
0,07 |
0,13 |
0,01 |
|
|
|
EISS |
-0,02 |
-0,12 |
— |
-0,36*** |
-0,52*** |
0,55*** |
|
|
|
SELFC-AC |
0,06 |
0,15* |
-0,45*** |
— |
0,46*** |
-0,30*** |
|
|
|
CAQ-8 |
0,05 |
0,07 |
-0,45*** |
0,37*** |
— |
-0,50*** |
|
|
|
DASS-21-DEP |
-0,10 |
0,01 |
0,60*** |
-0,37*** |
-0,50*** |
— |
|
|
|
Nota. EISS =
Escala de Vergonha Externa e Interna; SELFC-AC = Escala de Autocompaixão
[dimensão autocompaixão (AC)]; CAQ-8 = Questionário de Ação Comprometida;
DASS-21-DEP = Escala de Ansiedade, Depressão e Stress [Dimensão depressão
(DEP)]. As correlações entre as variáveis estudadas para o Grupo sem
diagnóstico de doença crónica estão assinaladas em itálico. *p < 0,05; **p < 0,01;
***p < 0,001. |
|
Análise de caminhos (path analysis)
De forma a
compreender as relações existentes entre as variáveis em estudo foi realizada
uma path analysis (MacKinnon, 2008), que visou
explorar o papel mediador da autocompaixão (SELFC-AC) e da ação comprometida
(CAQ-8) na relação entre vergonha (EISS) e sintomatologia depressiva
(DASS-21-DEP).
O modelo foi
inicialmente testado através de um modelo saturado, constituído por 20
parâmetros. Os resultados pareceram indicar a presença de uma path não significativa: o efeito direto da
autocompaixão na sintomatologia depressiva (bSELFC-AC
= -0,34; SEb =
0,34; Z = -1.02; p = 0,309). Esta path foi
eliminada e o modelo foi reajustado e recalculado.
O modelo final (Figura 1),
o qual pareceu demonstrar uma excelente adequação aos dados empíricos [χ2(1) = 1.03, p = 0,309; CFI = 1.00; TLI = 1.00; RMSEA =
0,01, p = 0,537; 95% IC = 0,00 a
0,13] (Kline, 2005), explicou
17% da variância da autocompaixão, 29% da variância da ação comprometida e 41%
da variância associada à sintomatologia depressiva.
Os resultados
pareceram demonstrar que a vergonha teve um efeito direto na autocompaixão (β = -0,41; bEISS
= -0,05; SEb
= 0,01; Z = -9,48; p < 0,001), na ação comprometida (β = -0,39; bEISS
= -0,50; SEb = 0,06;
Z = -8,93; p < 0,001) e na sintomatologia depressiva (β = 0,45; bEISS
= 0,42; SEb =
0,04; Z = 10,78; p < 0,001). A autocompaixão pareceu apresentar um efeito direto
na ação comprometida (β = 0,26; bSELFC-AC = 2,89;
SEb = 0,49; Z = 5,90; p < 0,001) a qual, por sua vez, pareceu ter um efeito direto na
sintomatologia depressiva (β = -0,29; bCAQ-8
= -0,21; SEb
= 0,03; Z = -6,97; p < 0,001).
A análise dos
efeitos indiretos pareceu demonstrar que a vergonha apresentava um efeito
indireto de -0,10 (95% IC = -0,15 a -0,07) na ação comprometida, o qual
pareceu ser mediado através da autocompaixão. Simultaneamente, a vergonha
pareceu ter um efeito indireto de 0,14 (95% IC = 0,09 a 0,20) na
sintomatologia depressiva, mediado pela autocompaixão e pela ação comprometida.
Por sua vez, a autocompaixão pareceu ter um efeito indireto de -0,07 (95% IC
= -0,12 a -0,04) na sintomatologia depressiva, o qual pareceu ser mediado pela
ação comprometida.
Como síntese, os
resultados obtidos sugeriram que a vergonha se associou a níveis mais elevados
de sintomatologia depressiva e este efeito pareceu ser mediado por menores
competências autocompassivas e menos padrões de ação comprometida.
Figura 1. Modelo Final do modelo de Path Analysis. Estão apresentados os
coeficientes estandardizados das paths entre as variáveis. EISS = Escala
de Vergonha Externa e Interna; SELFC-AC = Escala de Autocompaixão [dimensão
autocompaixão (AC)]; CAQ-8 = Questionário
de Ação Comprometida; DASS-21-DEP = Escala de Ansiedade, Depressão e Stress
[Dimensão depressão (DEP)]. *** p < 0,001.
Análise
Multigrupos
De forma a testar a existência de diferenças no modelo entre os dois
grupos (grupo com e sem diagnóstico de doença física crónica), foi realizada
uma análise multigrupos. Para ambos os grupos o modelo apresentou um ajustamento
aos dados empíricos muito bom (χ2 (2) = 1,31, p = 0,521; CFI = 1,00; TLI
= 1,00; RMSEA = 0,00, [IC = 0,00; 0,08]; p = 0,788). Os
resultados obtidos no teste de diferença do qui-quadrado entre o modelo não
restrito (modelo em que os parâmetros podem variar entre os grupos) (χ2(2) = 1,31, p
= 0,521) e o modelo totalmente restrito (χ2(7) = 3,89; p = 0,792), revelaram a invariância
do modelo em relação aos grupos em comparação (χ2dif(5) = 2,59; p = 0,764). Por fim, para
testar as diferenças entre os dois grupos entre todas as todas as estimativas
de parâmetros, foram calculados os valores de rácio crítico (z). Nenhum
coeficiente de parâmetros demonstrou diferenças estatisticamente significativas
entre os grupos (valores z entre - 0,85 e 0,80; p > 0,05) (Byrne, 2010; Tabachnick
& Fidell, 2007).
Assim, estes resultados pareceram demonstrar que as relações entre as variáveis
em estudo não apresentam diferenças nos dois grupos, tanto ao nível do modelo
geral como ao nível das paths entre variáveis.
O presente estudo teve como principal objetivo explorar em que medida
dois processos psicológicos adaptativos, autocompaixão e ação comprometida,
medeiam significativamente o impacto de sentimentos de vergonha na
sintomatologia depressiva em pessoas com e sem diagnóstico de doença física
crónica. Adicionalmente, estávamos particularmente interessados em explorar diferenças entre os grupos com e sem diagnóstico de doença
física crónica, em relação às variáveis em estudo. No que diz respeito às
diferenças entre os grupos, os resultados revelaram que o grupo com doença
física crónica apresenta pontuações significativamente superiores em relação à
vergonha e sintomatologia depressiva, comparativamente ao grupo sem doença
física crónica. Estes resultados estão em consonância com o esperado uma vez
que os doentes crónicos são teoricamente considerados mais propensos a
experienciar sentimentos de vergonha (e.g., na doença inflamatória intestinal; Casati et al., 2000). Contudo, o presente estudo é o primeiro, até ao nosso conhecimento
atual, que explora as diferenças nos sentimentos de vergonha em grupos com e
sem doença crónica, mostrando que doentes crónicos parecem objetivamente
apresentar maiores níveis nesta variável em comparação ao grupo sem diagnóstico
de doença física crónica, podendo estes estar associados à experiência de ter
doença crónica e sua sintomatologia ou consequências dos tratamentos,
acrescentando assim novos dados à literatura. Paralelamente, os níveis de
sintomatologia depressiva superiores no grupo com doença crónica estão de
acordo com os dados empíricos prévios que suportam que estes indivíduos
reportam maiores dificuldades psicológicas (i.e., sintomatologia depressiva)
comparativamente a uma amostra de população geral (Pinto-Gouveia et al., 2013). Em
consonância com pesquisas anteriores (Pinto-Gouveia et al., 2013), não
foram encontradas diferenças significativas entre os participantes com e sem doença
crónica em relação aos níveis de autocompaixão. Além disso, o
presente estudo revelou diferenças significativas nos níveis de ação
comprometida entre participantes com e sem doença crónica. Este dado revela-se
particularmente interessante e parece indicar uma menor tendência do grupo com
doença crónica em apresentar padrões de ações consistentes com os valores
pessoais. Paralelamente este dado pode ser entendido dado a associação já
documentada entre vergonha e menor comprometimento com ações congruentes com os
valores pessoais (Trindade et al., 2018b). Assim, revelando os indivíduos com
diagnóstico de doença crónica maiores níveis de vergonha, é expectável uma
menor adoção de comportamentos alinhados com uma vida valorizada.
Os resultados de correlação demonstram que os grupos apresentam um
padrão semelhante de associações. Verificou-se que, em ambos os grupos,
sentimentos de vergonha estão significativamente associados a menores
competências autocompassivas. Este dado está em conformidade com pesquisas
anteriores numa amostra de doentes com doença inflamatória intestinal, em
relação à vergonha relacionada à doença crónica (Trindade et al., 2017a) e em
amostra não clínica, em relação a sentimentos gerais de vergonha (e.g.,
Ferreira et al., 2013). Além disso, como sugerido em estudos prévios que documentam os
efeitos adversos da vergonha relacionada à doença crónica (e.g., Trindade et
al., 2017a, 2018a) e sentimentos gerais de vergonha (e.g., Kim et al., 2011; Matos &
Pinto-Gouveia, 2010) no funcionamento e bem-estar psicológico, neste estudo a vergonha
associou-se positivamente com a sintomatologia depressiva, em ambos os grupos.
Contudo, é de salientar que este estudo acrescenta à literatura a relação de
uma única medida de experiência de vergonha externa e interna com a sintomatologia
depressiva. A ação comprometida apresenta associações negativas relevantes com
sintomas psicológicos (i.e., sintomatologia depressiva) e com a vergonha
corroborando, assim, resultados anteriores numa amostra da população geral e de
mulheres com carcinoma da mama (Trindade et al., 2018b). Estes dados parecem indicar que persistir
em ações guiadas pelos valores pessoais se associa a menor vivência de vergonha
e de sintomas depressivos.
Adicionalmente, do nosso conhecimento atual este é o primeiro estudo
que analisa a relação entre os dois processos psicológicos (i.e., autocompaixão
e ação comprometida). Este estudo acrescenta à literatura a associação
significativa e positiva entre autocompaixão e ação comprometida. De facto,
tanto no grupo com como sem doença física crónica foi verificado que maiores
níveis de autocompaixão estão associados a maior adoção de ações congruentes
com os valores pessoais. Os resultados também revelaram associações negativas
entre autocompaixão e sintomatologia depressiva, o que está de acordo com
estudos prévios anteriores que demonstram que níveis mais elevados de
autocompaixão estão relacionados a um melhor funcionamento psicológico, em
particular, com a diminuição de sintomas depressivos (e.g., MacBeth
& Gumley, 2012; Pinto-Gouveia et al., 2013).
Para explorar a hipótese principal, isto é, se a associação entre
vergonha e a sintomatologia depressiva é significativa e mediada pela autocompaixão
e ação comprometida, foi realizada uma path
analysis. O modelo teórico testado apresenta uma
excelente adequação aos dados, explicando 41% da variância da sintomatologia
depressiva. Os resultados sugerem que parte do efeito que a vergonha tem na
sintomatologia depressiva é explicado pelos mecanismos de autocompaixão e ação
comprometida. Particularmente, os dados sugerem que a experiência de vergonha
se associa a maior sintomatologia depressiva, sendo esta relação parcialmente
mediada por menores níveis de autocompaixão e de ação comprometida.
Especificamente, foi verificado que a presença de experiência de vergonha está
associada a menores níveis de ação comprometida, através de menores níveis de
competências autocompassivas. A relação direta encontrada no presente estudo
entre vergonha e sintomatologia depressiva suporta dados da literatura
existente que demonstram que a vergonha está associada a maior sintomatologia
depressiva (e.g., Kim et al., 2011; Pinto-Gouveia & Matos, 2011; Trindade et al., 2017a, 2018a). Os dados demonstram um efeito direto e
negativo da vergonha na autocompaixão e na ação comprometida. De facto, estudos
prévios sublinham que indivíduos que experienciam maiores níveis de vergonha
apresentam menores níveis de autocompaixão (e.g., Ferreira et al., 2013; Trindade
et al., 2017a; Zhang et al., 2018) e de ação comprometida (Trindade et al., 2018b). Foi ainda verificado que permanecer em
ações guiadas pelos valores pessoais parece levar a menores níveis de
sintomatologia depressiva, o que está em conformidade com estudos existentes
(Trindade et al., 2018b). No entanto,
este estudo acrescenta dados relevantes à literatura sugerindo que maiores
níveis de autocompaixão se associam a um maior envolvimento em ações
consistentes com os valores de vida pessoais. Além disso, a ação comprometida
revelou-se um importante mediador da associação entre a autocompaixão e
sintomas depressivos. Experienciar maiores níveis de autocompaixão parece levar
a menor sintomatologia depressiva, através dos mecanismos de ação comprometida.
É importante ressaltar que os resultados obtidos na análise multigrupos
suportam a invariância do modelo testado em participantes com e sem doença
física crónica, mostrando que estas relações são semelhantes em ambos os grupos
em estudo.
Estes resultados devem ser analisados considerando algumas limitações.
Uma das principais limitações relaciona-se com a natureza transversal do
estudo, impossibilitando o estabelecimento de conclusões de causalidade entre
as variáveis. Outra das limitações relaciona-se com a utilização de
questionários de autorresposta, dado que, por traduzir uma maior subjetividade,
poderá conduzir a enviesamentos nos resultados. De modo a ultrapassar estas
limitações, pesquisas futuras devem, portanto, recorrer a um planeamento
longitudinal, assim como a entrevistas para explorar estes dados. O
recrutamento dos participantes via online poderá ter causado algum
enviesamento na amostragem, limitando a generalização dos dados obtidos. Além
disso, o tamanho diminuto da amostra e a proporção desigual de participantes do
género feminino e masculino em ambos os grupos constituem uma limitação
importante do estudo. Adicionalmente, as amostras em
estudo (com e sem diagnóstico de doença crónica) revelaram diferenças
significativas entre si quanto às variáveis sociodemográficas (e.g., idade,
género e estado civil). Assim, os resultados devem ser replicados em amostras
maiores e mais homogéneas em relação ao género e às características
sociodemográficas (como idade, estado civil). Adicionalmente, os resultados
devem ser explorados em amostras com condições crónicas específicas devido a
possíveis especificidades de determinadas doenças, recrutando doentes em
centros médicos. Dada a natureza multideterminada e complexa da sintomatologia
depressiva, outros processos de regulação emocional não explorados no modelo
testado podem estar envolvidos. Desta forma, estudos futuros devem incluir
outros processos de regulação emocional de forma a explorar o impacto de outros
mecanismos na relação entre a vergonha e sintomatologia depressiva.
Em suma, os dados obtidos permitem corroborar a importância da
autocompaixão e ação comprometida enquanto processos mediadores significativos
para a explicação da sintomatologia depressiva. Em
termos da investigação e da prática clínica, este estudo sustenta a relevância,
para a saúde mental, dos processos de autocompaixão e ação comprometida tanto
em pessoas sem como com doença física crónica. Suporta, ainda, que intervenções
clínicas com o objetivo de melhorar a saúde mental poderão beneficiar da
promoção destes processos. De facto, este estudo reforça a pertinência do
desenvolvimento de programas de intervenção baseados na compaixão e na ação
comprometida, à luz da Terapia Focada na Compaixão e da Terapia de Aceitação e
Compromisso, para a melhoria do bem-estar e saúde mental em indivíduos com e
sem condições crónicas físicas de saúde.
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|
Anexo
A Lista
de Doenças Crónicas Reportadas pelos Participantes (n = 223) (continua) |
|
|||
|
|
n |
% |
|
|
|
Reumatológicas e musculoesqueléticas |
Lúpus |
75 |
33,63 |
|
|
Fibromialgia |
24 |
10,76 |
|
|
|
Síndrome de Sjogren |
14 |
6.28 |
|
|
|
Artrite reumatóide |
13 |
5,82 |
|
|
|
Doença de Behçet |
8 |
3,59 |
|
|
|
Espondilite
anquilosante |
3 |
1,34 |
|
|
|
Osteoartrose |
3 |
1,34 |
|
|
|
Artrite idiopática
juvenil |
2 |
0,90 |
|
|
|
Esclerose sistémica |
2 |
0,90 |
|
|
|
Síndrome de Raynaud |
2 |
0,90 |
|
|
|
Síndrome do anticorpo antifosfolípidico |
2 |
0,90 |
|
|
|
Tendinite |
2 |
0,90 |
|
|
|
Vasculites |
2 |
0,90 |
|
|
|
Doença articular
congénita |
1 |
0,45 |
|
|
|
Encefalomielite
miálgica |
1 |
0,45 |
|
|
|
Epicondilites |
1 |
0,45 |
|
|
|
Esclerodermia |
1 |
0,45 |
|
|
|
Espondilartropatia |
1 |
0,45 |
|
|
|
Espondiloartrite indiferenciada |
1 |
0,45 |
|
|
|
Polimiosite |
1 |
0,45 |
|
|
|
Rizartrose |
1 |
0,45 |
|
|
|
Síndrome de Crest |
1 |
0,45 |
|
|
|
Tendinose |
1 |
0,45 |
|
|
|
Respiratórias |
Asma |
17 |
7,62 |
|
|
Rinite alérgica |
6 |
2,69 |
|
|
|
Bronquite asmática
alérgica |
2 |
0,90 |
|
|
|
Sinusite |
2 |
0,90 |
|
|
|
Asma alérgica |
1 |
0,45 |
|
|
|
Bronquite |
1 |
0,45 |
|
|
|
Bronquite asmática |
1 |
0,45 |
|
|
|
Doença pulmonar
obstrutiva crónica |
1 |
0,45 |
|
|
|
Enfisema pulmonar |
1 |
0,45 |
|
|
|
Endócrinas e hematológicas |
Diabetes mellitus |
4,93 |
4,93 |
|
|
Hipotiroidismo |
2,69 |
2,69 |
|
|
|
Tiroidite de Hashimoto |
1,34 |
1,34 |
|
|
|
Gamapatia monoclonal |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
Hipercolesterolemia |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
Hipertiroidismo |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
PolicitemiaVera |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
Talassemia |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
Trombocitemia essencial |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
Trombofilia |
0,45 |
0,45 |
|
|
|
Ginecológicas |
Endometriose |
22 |
9,87 |
|
|
Adenomiose |
1 |
0,45 |
|
|
|
Renais |
Doença renal crónica |
13 |
5,83 |
|
|
Doença renal poliquística |
2 |
0,90 |
|
|
|
Nefrite |
1 |
0,45 |
|
|
|
Osteodistrofia renal |
1 |
0,45 |
|
|
|
Síndrome de Alport |
1 |
0,45 |
|
|
|
Gastrointestinais |
Doença de Crohn |
6 |
2,69 |
|
|
Doença celíaca |
3 |
1,34 |
|
|
|
Colite ulcerosa |
2 |
0,90 |
|
|
|
Gastrite crónica |
2 |
0,90 |
|
|
|
Colangite autoimune |
1 |
0,45 |
|
|
|
Fibrose quística |
1 |
0,45 |
|
|
|
Hepatite |
1 |
0,45 |
|
|
|
Síndrome do intestino irritável
|
1 |
0,45 |
|
|
|
Dermatológicas |
Psoríase |
7 |
3,14 |
|
|
Dermatite atópica |
1 |
0,45 |
|
|
|
Doença de Hailey-Hailey |
1 |
0,45 |
|
|
|
Eczema |
1 |
0,45 |
|
|
|
Urticária |
1 |
0,45 |
|
|
|
Vitiligo |
1 |
0,45 |
|
|
|
|
Hipertensão arterial |
7 |
3,14 |
|
|
Cardiovasculares |
Insuficiência cardíaca |
1 |
0,45 |
|
|
|
Síndrome
de Wolff-Parkinson-White |
1 |
0,45 |
|
|
Neoplásicas |
Cancro da mama |
1 |
0,45 |
|
|
Leucemia mieloide
crónica |
1 |
0,45 |
|
|
|
Outras neoplasias |
1 |
0,45 |
|
|
|
Neurológicas |
Dor neuropática |
1 |
0,45 |
|
|
Esclerose múltipla |
1 |
0,45 |
|
|
|
Neuromusculares |
Hipertermia maligna |
1 |
0,45 |
|
|
|
Miastenia gravis |
1 |
0,45 |
|
|
Oftalmológicas |
Glaucoma |
1 |
0,45 |
|
|
|
|
|
|
|
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