Revista Portuguesa de Investigação Comportamental e Social 2019 Vol. 7 (1): 14-24
Portuguese Journal of Behavioral and Social Research 2019 Vol. 7 (1): 14-24
Departamento de Investigação & Desenvolvimento • Instituto Superior Miguel Torga


ARTIGO ORIGINAL

Metodologia de Cuidado Humanitude: Benefícios e desafios da sua implementação na prática

Methodology of Care Humanitude: Benefits and challenges of its implementation in practice

Carolina Fonseca (1)

Helena Luz (2)

Rosa Melo (3)

(1) Independente, Portugal

(2) Univ de Coimbra, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20), Portugal

(3) Esc Sup de Enfermagem de Coimbra, Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA:E), Portugal


Recebido: 04/01/2021; Revisto: 13/02/2021; Aceite: 27/04/2021.


https://doi.org/10.31211/rpics.2021.7.1.200


Resumo

Objetivo: Identificar os benefícios e desafios da implementação da Metodologia de Cuidado Humanitude (MCH) na prática dos cuidados em Estrutura Residencial para Idosos. Método: Trata-se de um estudo exploratório e descritivo de natureza qualitativa abrangendo uma amostra de três interlocutores com experiência na formação e implementação da MCH. A recolha de dados foi realizada através de um questionário misto, sendo as questões abertas interpretadas através da técnica da análise de conteúdo. Resultados: Os benefícios da MCH reportam-se às pessoas cuidadas (e.g., aumento da aceitação dos cuidados), aos cuidadores formais/colaboradores (e.g., redução do absentismo), bem como ao sistema organizacional (mudança da cultura dos cuidados). Os desafios colocam-se a nível interno (e.g., apropriação das técnicas, resistência à mudança) e externo (e.g., formação dos profissionais, organização dos cuidados centrados na tarefa). Conclusões: A MCH é uma abordagem centrada na interação com a pessoa cuidada, com benefícios transversais a todo o contexto organizacional. A sua implementação traduz oportunidades para a prática diária do cuidado, abrangendo as pessoas cuidadas e as equipas prestadoras de cuidados, surtindo influência no contexto organizacional. A MCH representa uma mudança no paradigma do cuidado, surgindo, no entanto, vários desafios à sua implementação na prática, pelo que se sugere um maior envolvimento de todos os interlocutores do cuidado, nomeadamente dos líderes formais das instituições e dos agentes das políticas públicas.

Palavras-Chave: Cuidados; Cuidadores; Humanitude; Pessoas idosas; Estudo qualitativo.


Abstract

Objective : Identify the perception of professionals regarding the benefits and difficulties of implementing the Methodology of Care Humanitude (MCH) in Residential homes for older people care practice. Method: This is an exploratory and descriptive study of a qualitative nature, covering a sample of three interlocutors with experience in the formation and implementation of MCH. Data collection was carried out through a mixed questionnaire, with open questions being interpreted using the content analysis technique. Results: The benefits of MCH relate to the people cared for (e.g., increased acceptance of care), to formal caregivers/collaborators (e.g., reduced absenteeism), as well as to the organizational system (changing the culture of care). The challenges arise internally (e.g., appropriation of techniques, resistance to change) and externally (e.g., training of professionals, organization of care focused on the task). Conclusions: MCH is an approach centered on interaction with the person being cared for, with benefits that span the entire organizational context. Its implementation translates opportunities for the daily practice of care, encompassing the people cared for and the teams providing care, influencing the organizational context. MCH represents a change in the care paradigm; however, there are several challenges to its implementation in practice, which suggests that greater involvement of all care interlocutors is suggested, namely the formal leaders of institutions and agents of public policies.

Keywords: Care; Caregivers; Older adults; Humanitude; Qualitative study.

Introdução

O envelhecimento é uma realidade mundial. Segundo as Nações Unidas (2019), existiam em todo o mundo 703 milhões de pessoas com mais de 65 anos, destacando-se o contexto Europeu como o mais envelhecido, já que 19,7% da sua população apresenta mais de 65 anos, dimensão esta que se estima poder vir a representar 28,5% da população europeia em 2050. Idêntica tendência de crescimento é percetível em relação às pessoas com 85 e mais anos, as quais se admite que em 2050 representem 31,8 milhões de pessoas (European Union, 2019). Portugal enquadra-se nesta tendência, sendo considerado o terceiro país mais envelhecido da Europa, com 21,8% de população com mais de 65 anos, indicador este, que o retrata como uma sociedade híper envelhecida (Luz, 2019). Adicionalmente contribui para esta concetualização a evidência relativa ao aumento das pessoas com 80 e mais anos, de que é um exemplo o índice de longevidade situado nos 29,4% em 2018 ( Pordata, 2020).

Esta conquista da longevidade das populações é resultado de múltiplos fatores, nomeadamente os avanços da medicina preventiva e curativa, o investimento na educação, a promoção da saúde e a melhoria no acesso aos cuidados de saúde e aos apoios sociais (e.g., Fernandes, 2007; Moreira 2020). A longevidade convoca, assim, a um entendimento acerca do envelhecimento como processo diferenciado, veiculador de oportunidades quer numa perspetiva individual, quer societal (Luz, 2017 ). Tal significa, que a abordagem do envelhecimento no presente deve incorporar uma leitura integrada e dinâmica capaz de considerar o percurso de vida dos indivíduos aliado a múltiplas dimensões e trajetórias, edificando uma nova perspetiva do envelhecimento humano (Miguel, 2016). Deste modo, reconhece-se a necessidade de alterar as perceções sobre o que é ser idoso, maximizando as oportunidades e potencialidades que advêm de um contingente de pessoas com mais idade (Rodrigues, 2018). No entanto, não pode deixar de se considerar o facto de que o acréscimo da longevidade acarreta uma maior vulnerabilidade ao surgimento de doenças que resultam em situações de dependência particularmente no domínio cognitivo, onde se incluem as patologias depressivas e a demência (Organização Mundial de Saúde, 2017). Refira-se que para o caso português, o número de pessoas com demência deverá crescer mais do que o dobro, entre 2018 e 2050, tendência esta que se assume estar relacionada com o expressivo aumento do número de pessoas com mais de 70 anos, com destaque para a faixa etária acima dos 85 anos (Alzheimer Europe, 2019).

Estas são patologias que se tornam incapacitantes e que apresentam repercussões ao nível da execução das Atividades de Vida Diária (AVD) (Rodrigues et al., 2014), condicionam a provisão do cuidado familiar (Imaginário, 2004; Pimentel & Albuquerque, 2010) e suscitam uma renovada atenção por parte dos agentes do cuidado formal, onde se incluem as Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI). As ERPI são estruturas cruciais no campo das respostas aos idosos e sobretudo aos muito idosos, já que 50% das pessoas institucionalizadas têm 80 e mais anos ( Gabinete de Estratégia e Planeamento, 2019 ). Estas estruturas enfrentam vários desafios no âmbito da prestação de cuidados, uma vez que os seus utentes apresentam múltiplas dependências nas AVD.

Em ERPI, o trabalho prestado tem como finalidade máxima um cuidado digno e humanizado (Portaria n.º 67/2012 de 12 de março), mostrando-se os recursos humanos associados ao cuidado elementos essenciais para lidar com os quadros de dependência (e.g., comportamentos demenciais como, a deambulação, a agitação, o discurso repetitivo e as agressões físico e/ou verbais) que comprometem a funcionalidade dos idosos. Os quadros de dependência envolvem níveis elevados de sentimentos de stress e desânimo dos cuidadores (Ribeiro et al., 2008), o que conduz ao seu desgaste físico e emocional (Kuske et al., 2009; Rolland et al., 2007). Por outro lado, existem outros fatores que conferem complexidade e que justificam as dificuldades na prestação de cuidados, tais como o desconhecimento da doença e a falta de formação dos profissionais (Barbosa et al., 2011). Estas dificuldades conduzem a um elevado nível de absentismo por parte dos profissionais com repercussões negativas na qualidade dos cuidados prestados (Sousa, 2011). Neste sentido, existe a necessidade de os cuidadores possuírem uma formação que lhes permita, não apenas atender à satisfação das necessidades básicas, mas também à relação a estabelecer com a pessoa cuidada, mostrando-se a Metodologia de Cuidado Humanitude (MCH) fortemente oportuna para de uma forma inovadora lidar com a complexidade do cuidado (Fonseca et al., 2020).

A MCH assenta em princípios antropológicos e humanistas como a prestação de cuidados com zero cuidados de força; o respeito pela singularidade e intimidade; viver e morrer de pé; abertura da estrutura para o exterior e lugar de vida e de vontades, os quais, no global, se mostram orientados para a promoção do respeito pela pessoa como um ser individual, com gostos, vontades e que salvaguardam a sua privacidade e autonomia.

Estes princípios são operacionalizados através de regras de arte ou boas práticas que auxiliam a implementação desta metodologia, distinguindo-se neste âmbito: o respeito pelo domicílio; o anunciar-se; a negociação dos cuidados; o respeito pelo sono; as contenções, que apenas devem ocorrer quando justificadas e em último recurso, entre outras. A MCH tem por base os pilares relacionais, como o olhar, a palavra e o toque, e um pilar identitário, a verticalidade (Figueiredo et al., 2018; Gineste & Pellissier, 2008; Henriques, 2017).

A Sequência Estruturada de Procedimentos Cuidativos Humanitude (SEPCH) permite a sistematização e operacionalização dos princípios fundamentais, das regras de arte e dos pilares Humanitude (Figueiredo et al., 2018; Henriques, 2017) e mostra-se constituída a partir de cinco etapas:

1) Pré-preliminares, que permitem a preparação da abordagem e o início da relação de modo a evitar abordagens surpresa;

2) Os preliminares, que consistem no encontro entre o cuidador e a pessoa cuidada permitindo estabelecer uma relação através dos pilares relacionais, como o olhar, a palavra e o toque;

3) A rebouclage sensorial, que consiste na efetivação dos cuidados através da utilização de técnicas relacionais, transformando os cuidados em momentos prazerosos tanto para o cuidador como para a pessoa cuidada;

4) A consolidação emocional, que corresponde à finalização do cuidado deixando na memória emocional uma referência positiva daquele momento permitindo assim a facilitação do consentimento relacional e a aceitação de cuidados futuros;

5) A marcação do reencontro, que traduz o momento em que se acorda o próximo encontro, evitando sentimentos de abandono e de desprezo.

A MCH evidencia repercussões positivas nas pessoas cuidadas, a nível da redução da sua agitação e aumento da aceitação do autocuidado, refletindo-se em consequências diretas para as equipas responsáveis pela prestação de cuidados como a diminuição do absentismo e do burnout ( Figueiredo et al., 2018; Henriques, 2017).

Neste contexto, este artigo tem como objetivo identificar os benefícios e os desafios inerentes à implementação da MCH sob o ponto de vista dos interlocutores associados à formação e implementação da MCH.

Método

A metodologia subjacente ao estudo é de natureza exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa. A amostra de cariz intencional abrangeu três formadores (I1, I2 e I3) da MCH acreditados na implementação da MCH pelo IGM-Portugal, tendo por base os seguintes critérios: experiência na implementação da MCH em contexto institucional e desempenho de cargos de gestão em instituições de apoio à população idosa, nomeadamente em ERPI.

A recolha de dados foi realizada através de questionários constituídos na sua maioria por questões abertas, destinadas a identificar a perceção dos interlocutores relativa aos benefícios e desafios da implementação da MCH para a prática de cuidados, tendo a sua aplicação ocorrido em maio de 2020. As respostas foram sujeitas a análise de conteúdo, tendo-se percorrido em termos da organização da análise, as etapas, da pré-análise; exploração do material e tratamento dos resultados aliados à inferência e interpretação dos dados (Bardin, 2016; Vala, 1990). O processo de categorização mostrou-se dedutivo, tendo as categorias sido operacionalizadas por referência a um quadro concetual prévio ( Figueiredo et al., 2018).

Resultados e Discussão

A análise de conteúdo, suportada pela teoria, resultou em duas categorias: benefícios da implementação da MCH e desafios da sua implementação na prática. Relativamente aos benefícios, foram elencadas três subcategorias: pessoa cuidada, cuidador formal e sistema organizacional. Por seu lado, no que diz respeito à categoria desafios para a implementação da MCH, esta foi analisada com base em duas subcategorias, fatores internos e fatores externos (Tabela 1).

Tabela 1

Categorias e Subcategorias Relativas ao Contributo da MCH no Auxílio da Prestação de Cuidados

Categorias

Subcategorias

Benefícios da implementação da MCH

Pessoas cuidadas

Cuidadores formais/colaboradores

Sistema organizacional

Desafios na implementação da MCH

Fatores internos

Fatores externos

Os benefícios da implementação da MCH relacionados com as pessoas cuidadas incidem na redução da agitação e no aumento da aceitação do autocuidado, tal como evidenciam os seguintes discursos:

“(...) nas pessoas cuidadas verifica-se aumento da aceitação dos cuidados, redução da prevalência dos Sintomas Comportamentais e Psicológicos da Demência, (...), redução das contenções químicas e físicas (...)” (I1)

Reduz comportamentos de agitação/oposição/recusa de cuidados (...) aumenta a comunicação /facilita a interação(I2)

“(...) não há tanta recusa (...)” (I3)

Estes resultados foram corroborados por diversos estudos (Henriques et al., 2019,2020; Melo et al., 2017, 2019), que comprovam que após a implementação da MCH se verifica uma redução dos comportamentos de agitação e uma maior aceitação do autocuidado. Verifica-se também a promoção da autonomia e do autocuidado como assinala um dos interlocutores:

“(...) reduz a degradação física e mental (...), reduz a dependência, aumenta a autonomia e independência, aumenta o envolvimento nos cuidados, promove a verticalidade, reduz a necessidade de contenções físicas e químicas.” (I2)

A par, os auscultados assinalam a diminuição de problemas de mobilidade:

“(...) redução de quedas (...)” (I1)

e o aumento da qualidade dos cuidados:

“(...) cuidados tornam-se momentos prazerosos, mais tempo para serem realizados (sem foco nas tarefas e horários), sem pressão (...) maior negociação dos mesmos (...) a prescrição de cuidados em equipa (...) o foco não é a tarefa, mas o objetivo a atingir e o que fazer e como fazer para lá chegar com a pessoa e sobretudo envolvê-la” (I3)

Os aspetos apontados pelos interlocutores foram sustentados por vários estudos (Figueiredo et al., 2018;Melo et al., 2019; Simões et al., 2012) que destacam os ganhos obtidos na qualidade de vida das pessoas que se encontram em situações de elevada dependência (e.g., doentes acamados, doentes com quadros demenciais e com patologias associadas) e na promoção do seu autocuidado. Também como a literatura sugere, após a implementação das práticas cuidativas Humanitude, as pessoas cuidadas usufruem de cuidados mais prazerosos, verificando-se uma restruturação do cuidado, no qual o foco deixa de ser a tarefa e passa a ser a relação estabelecida entre cuidador e a pessoa cuidada (Melo et al., 2019).

Quanto à subcategoria cuidador formal, os benefícios refletem-se na satisfação pessoal e profissional, tal como demonstram os seguintes depoimentos:

“maior satisfação dos profissionais” (I2)

e

“(...) motivação (...)” (I1)

Além da motivação dos profissionais, a forma como a MCH facilita o relacionamento e a prestação de cuidados, reflete-se num benefício para os cuidadores, tal como realçam os seguintes discursos:

“maior consciencialização da prática individual (...), maior facilidade na prestação dos cuidados (...) na comunicação (...)” (I2)

O aumento da motivação, satisfação profissional e a maior consciência da prática individual, são aspetos corroborados pelos estudos de Figueiredo et al. (2018) e Henriques et al. (2019), os quais destacam que os cuidadores aquando da implementação da MCH revelam uma maior consciência da prática dos cuidados, refletindo-se numa maior satisfação pessoal e profissional. A par, sugere-se que ocorre também uma maior partilha e entreajuda entre as auxiliares de ação direta e uma redução de conflitos entre estes profissionais:

“As auxiliares de ação direta perdem o medo de deixar as pessoas fazerem por si o autocuidado (…), as relações são facilitadas e a partilha entre cuidadores muitas vezes toma outro rumo (…) antes da implementação da MCH as quezílias sobre quem fez ou não fez deixa-os agarrados a conflitos, após a implementação a dinâmica da equipa passa para a partilha de conquistas, como definir objetivos capazes de serem atingidos, preocupação com o cuidado avaliativo.” (I3)

Tal como a investigação assinala (Henriques et al., 2020; Melo et al., 2019), a redução da ansiedade e dos conflitos na equipa e a melhoria do relacionamento com os pares e com a pessoa cuidada surgem como aspetos centrais da prática do cuidado formal potenciados pela implementação da MCH.

Em relação à subcategoria sistema organizacional prevê-se que a implementação da MCH reformule as práticas cuidativas e que a longo prazo esta se reverta numa mudança na cultura dos cuidados, potenciando o envolvimento de toda a equipa na prescrição de cuidados adequados e personalizados à pessoa cuidada, como se indica:

“(...) maior intencionalidade na relação (...) prescrição dos cuidados envolvendo toda a equipa interdisciplinar (...)” (I2)

Verifica-se de igual modo uma maior reorganização das equipas para a prestação de um cuidado sem interrupções,

“as equipas reorganizam-se para não perder tanto tempo com atividades secundárias (...), maior preocupação com a preparação dos materiais para não haver interrupções” (I3)

Regista-se também uma diminuição da desmotivação dos colaboradores e das baixas por lesões com repercussões na organização institucional, conforme se relata:

“Diminuição das baixas por lesões dorso lombares ou similares, baixa da desmotivação” (I2)

A mudança na cultura e organização dos cuidados, refletida num maior foco na pessoa e na humanização dos cuidados, suscita um maior envolvimento e motivação de toda a equipa, levando a uma redução do absentismo na sequência da diminuição do número de baixas dorso lombares, tal como evidenciado nos estudos de Figueiredo et al. (2018), Melo et al. (2019) e Simões et al. (2012).

No que concerne aos desafios na implementação da MCH foram apontados fatores internos e externos (subcategorias analíticas). Acerca dos fatores internos (relacionados com os cuidadores) enfatiza-se o tempo para a apropriação do conhecimento e das técnicas, visto como um entrave à adoção de novas práticas cuidativas, como salientam dois interlocutores:

“(...) apropriação do conhecimento, que acontecendo de uma forma concentrada, torna-se demasiada para que seja assimilada, consolidada e transferida para os cuidados de forma fluida (...) lentificação das práticas durante o período inicial, devido à aplicação de novas técnicas (...)” (I1)

A este respeito os cuidadores identificam-se com as práticas, no entanto realçam que necessitam de um longo tempo para se apropriarem das mesmas:

“(...) acabam até por dizer que se identificam [com as práticas da MCH], mas vem mais uma vez a questão do tempo que não têm para as implementar e colocar na prática (...) para as auxiliares de ação direta se apropriarem da metodologia precisam de ajuda ao longo do tempo para se apropriarem das técnicas” (I3)

A resistência à mudança e insegurança face a adoção de novas técnicas constitui adicionalmente um impedimento para a apropriação da MCH, sendo este um aspeto assinalado por todos os participantes:

“(...) insegurança sentida face à mudança de práticas e de rotinas (...), a não valorização dos esforços e dos resultados obtidos, sempre em busca da melhoria, focando o erro e o insucesso de longo prazo em vez das conquistas a curto prazo (...)” (I1)

Paralelamente, a rotinização das práticas, a resistência à adoção de novas técnicas cuidativas é assinalada como um aspeto dificultador da implementação da MCH:

“rotinização das práticas (...) resistência à mudança por parte dos colaboradores” (I2),

surgindo também destacado o sentimento de solidão como um entrave

“sentirem-se sozinhos na prestação de cuidados” (I3)

Todas as mudanças necessárias para que a implementação da MCH seja realizada com o máximo sucesso são muitas das vezes dificultadas pela sobrecarga das equipas, e pelo seu desgaste físico e psicológico, nomeadamente nos tempos pandémicos atuais, tal como sublinha um dos interlocutores:

“(...) particularmente neste tempo de pandemia os cuidadores formais evidenciam um maior cansaço físico e psicológico e maiores níveis de ansiedade dificultando a prestação de cuidados aos idosos institucionalizados, sendo por isso urgente ajudar, acompanhar a relembrar os princípios da humanitude e as regras de arte” (I3)

Estes relatos, que assinalam o tempo para a prestação de cuidados, bem como a resistência e insegurança por parte dos profissionais na adoção de novos hábitos cuidativos, indicam que estes aspetos são um forte entrave à implementação da MCH, elementos também identificados no trabalho de Figueiredo et al. (2018) que os aponta como obstáculos à utilização da metodologia de cuidados.

Na subcategoria fatores externos (relacionados com a organização), são realçados os constrangimentos na adoção dos novos procedimentos, assinalando-se a organização dos cuidados centrados na tarefa, que aliada à dificuldade na gestão do tempo e dos recursos humanos constituem um impedimento para a apropriação da MCH, como sublinha um dos participantes:

“(...) cuidados centrados na tarefa (...) dificuldade na gestão do tempo e dos recursos humanos (...)” (I2)

A falta de formação dos cuidadores constitui também um entrave, como evidenciado pelos seguintes discursos:

“(…) não existirem profissionais qualificados na área da saúde (…), o corpo de colaboradores que prestam cuidados diretos é constituído essencialmente por pessoas que frequentemente não tem qualquer tipo de formação em saúde. Se tivermos em conta que as nossas instituições cuidam de pessoas cada vez mais envelhecidas, com problemas agudos e crónicos de saúde.” (I2)

Também foi realçada a importância da dotação adequada de profissionais na área da saúde:

“compreendemos a importância do envolvimento dos profissionais da área da saúde, por exemplo, médicos e enfermeiros, neste processo (I2)

“A não presença da enfermagem é de facto uma das maiores dificuldades (...), estes são elementos muito importantes para a avaliação da pessoa cuidada e consequentemente a prescrição dos cuidados (…)” (I2)

“subscrevo inteiramente a desproporção de enfermeiros face ao número de utentes” (I3)

O défice de formação da equipa multidisciplinar, nomeadamente das cuidadoras de ação direta; a falta de profissionais na área da saúde, designadamente os enfermeiros para a realização de diagnósticos da situação e prescrição dos cuidados em saúde; a falta de acompanhamento e supervisão e a organização dos cuidados centrados na tarefa, são aspetos apontados como dificultadores na adoção da MCH e apoiados por diversos estudos (Figueiredo et al., 2018;Fonseca et al., 2020; Henriques et al., 2020). Importa salientar que a supervisão/acompanhamento do enfermeiro durante os cuidados de saúde poderá ser uma estratégia para colmatar as dificuldades sentidas pelos cuidadores de ação direta, permitindo uma maior consolidação das boas práticas (Melo & Henriques, 2020). Assim, a cultura dos cuidados centrados na tarefa constitui um fator que condiciona um cuidado baseado na relação, visto que o foco na tarefa impede que se valorize a interação entre cuidador e a pessoa cuidada, argumentos que os autores também destacam (e.g., Melo & Henriques, 2020).

O envolvimento das chefias é de igual modo essencial no processo de mudança, dado que quando esse envolvimento não existe a implementação das práticas da MCH é mais dificultada. Todos os interlocutores apontaram esse aspeto como dificultador na adoção da metodologia:

“(...) quando os líderes formais não estão envolvidos é extremamente difícil dar continuidade ao processo de implementação (...) devido à resistência à mudança (...) dos decisores, nomeadamente diretores clínicos, diretores técnicos, provedores, chefias, responsáveis (...)” (I2)

Paralelamente, a desvalorização da implementação da metodologia advinda de alguns stakeholders é assinalada como um desafio:

“(…) a não valorização da implementação por parte da direção, das famílias, dos sócios e da comunidade” (I1)

De realçar que os aspetos burocráticos traduzem adicionais constrangimentos:

“Os Diretores Técnicos sentem-se muitas vezes obrigados a seguir as diretrizes da Segurança Social que apresenta modelos de procedimentos focados apenas nas tarefas (…) verificando-se dicotomia entre os valores defendidos e os valores praticados” (I3)

Fundamentalmente e como vem sendo reforçado pela análise, quando existe um fraco envolvimento das chefias em relação à adoção de novas práticas cuidativas, as organizações ficam limitadas para incrementar mudanças significativas e duradoiras acopladas ao cuidado organizacional (Figueiredo et al., 2018; Fonseca et al., 2020).

Limitações

Apesar deste ser um estudo inovador no campo da MCH, a nível da identificação dos benefícios e desafios que estão associados à sua implementação, apontam-se algumas limitações na sua consecução. As principais limitações dizem respeito à dimensão reduzida da amostra, que limita a sua representatividade e ao facto de os interlocutores auscultados estarem envolvidos na implementação desta metodologia de cuidado, o que pode ter potenciado algum enviesamento dos resultados. Por outro lado, também a incipiente produção científica nesta área dificultou uma discussão mais abrangente. Sugere-se, neste sentido, a realização de estudos com amostras mais expressivas, envolvendo múltiplos interlocutores (e.g., cuidadores formais, informais, idosos), capazes de representar com maior solidez o impacto da implementação da MCH nas organizações provedoras do cuidado.

Conclusões

O envelhecimento da população e as comorbidades associadas erguem questões que importa atender por parte dos agentes associados ao cuidado. Na esfera das organizações prestadoras de cuidados, a incidência do fenómeno da velhice dependente e a sobrecarga que daqui resulta para os prestadores de cuidados e sistema organizacional traduz um sério desafio que importa não descurar. A este nível, a MCH revela ser uma tecnologia de cuidado oportuna que reverte benefícios a nível de todo o sistema organizacional, operacionalizando a humanização da assistência, podendo ser replicada em todos os contextos e em qualquer cuidado. No tocante à pessoa cuidada, a redução dos comportamentos de agitação e a diminuição dos problemas de mobilidade conduzem a uma melhoria da qualidade dos cuidados, refletida na diminuição da tensão provocada pela oposição e recusa dos cuidados, revertendo-os em momentos de bem-estar, para ambos (cuidador e pessoa cuidada). Esta alteração ao nível da aceitação dos cuidados revela também vantagens para os cuidadores conduzindo a um acréscimo de motivação e satisfação pessoal e profissional por parte das equipas prestadoras de cuidados, carecendo de se sublinhar que também através desta ferramenta se potencia um melhor relacionamento interdisciplinar e clima organizacional contribuindo-se para uma gestão construtiva de conflitos. Para o sistema organizacional, os principais benefícios repercutem-se na mudança da cultura dos cuidados, na diminuição do absentismo, na capacitação das equipas e numa maior consciencialização para a importância da humanização dos cuidados. Os desafios que neste contexto se colocam relacionam-se sobretudo com a resistência à mudança, insegurança face à adoção de novas práticas de cuidado, défice no acompanhamento/supervisão dos profissionais durante o processo de implementação da MCH, foco na tarefa, défice de formação das equipas, dotações inseguras e fraco envolvimento dos líderes. No essencial, a MCH afigura-se como uma abordagem cuja implementação e disseminação carece de considerar vários desafios para um cuidado integral, profissionalizado e humanizado.

Conflito de interesses | Conflict of interest : Nenhum | None.
Fontes de financiamento | Funding sources: Nenhuma | None.
Contributos: CF : Pesquisa nas bases de dados; Recolha e tratamento dos dados; Análise e discussão dos dados; Elaboração do artigo. HL: Tratamento dos dados; Análise e discussão dos dados; Elaboração do artigo. RM: Tratamento dos dados; Análise e discussão dos dados; Elaboração do artigo.

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