Revista Portuguesa de Investigação Comportamental e Social 2021 Vol. 8(2): 1–18
Portuguese Journal of Behavioral and Social Research 2021 Vol. 8(2): 1–18
e-ISSN 2183-4938
Departamento de Investigação & Desenvolvimento • Instituto Superior Miguel Torga
ARTIGO ORIGINAL
O impacto da COVID-19 em profissionais de serviço social portugueses e brasileiros: Um estudo exploratório
The COVID-19 impact on Portuguese and Brazilian social workers: An exploratory study
Marina Monteiro de Castro e Castro 1
Sónia Ribeiro 2
1 Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Serviço Social, Juiz de Fora, MG, Brasil
2 Instituto Superior Miguel Torga, Coimbra; Universidade Lusófona do Porto, FCESE, TRIE, Porto, Portugal
Recebido: 28/07/2022; Revisto: 07/10/2022; Aceite: 25/11/2022.
https://doi.org/10.31211/rpics.2022.8.2.275
Resumo
Objetivo: Objetivo: O presente estudo teve como objetivo pesquisar o impacto da pandemia COVID-19 na realidade profissional de assistentes sociais portugueses e brasileiros. Os assistentes sociais foram desafiados a exercer a sua prática profissional, enquanto serviço essencial, em condições de grande incerteza e de elevado risco, como foi o da pandemia. A investigação organizou-se em três eixos de análise: 1) impacto da pandemia nos beneficiários diretos do serviço social; 2) dificuldades, desafios, novas práticas e metodologias na intervenção social; 3) conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional e preocupações futuras. Métodos: Recolha de dados por meio de um questionário sociodemográfico e profissional e um guião de entrevista. Em Portugal, foram realizadas 20 entrevistas a assistentes sociais usando a plataforma de videoconferência Zoom, e no Brasil foram efetuadas 17 entrevistas que decorreram de forma presencial, entre dezembro de 2021 e março de 2022. Resultados: O distanciamento social durante a pandemia implicou a adoção de tecnologias virtuais na prática do serviço social. Numa prática profissional em que o face a face é fundamental na relação, o confinamento e o isolamento foram constrangimentos extraordinários. Os assistentes sociais conviveram com insegurança, dificuldades de acesso a equipamentos de proteção individual, intensificação do trabalho e adaptação a uma nova dinâmica de trabalho. Conclusões: Os assistentes sociais inquiridos, apesar de exaustos, expressaram ter sido resilientes e capazes em rapidamente se adaptar a novas práticas, recusando-se a abandonar os valores e princípios éticos da profissão. Num contexto de grande incerteza, de pouca informação, de medo e mesmo com poucos recursos, os assistentes sociais tiveram presente o sentido de missão e de compromisso solidário que define a profissão — assegurar o acesso das pessoas aos direitos, ao bem-estar e à segurança.
Palavras-Chave: COVID-19; Impacto; Pandemia; Serviço social.
Abstract
Objective: This study aimed to analyze the impact of the COVID-19 pandemic on the professional reality of Portuguese and Brazilian social workers. Social workers were challenged to perform their professional practice, as an essential service, under conditions of great uncertainty and high risk, as was the case of the pandemic. The objective of the investigation is organized into three axes of analysis: 1) impact of the pandemic on the direct beneficiaries of the social work; 2) difficulties, challenges, and new practices and methodologies in social intervention; 3) reconciliation of personal/professional life and future concerns of these professionals. Methods: Data was collected through a sociodemographic and professional questionnaire and an interview guide. In Portugal, the videoconferencing platform Zoom was used to conduct 20 interviews with social workers, and in Brazil, 17 interviews were carried out in person. Results: Social distancing during the pandemic involved adopting virtual technologies in social work practice. In a professional practice where face-to-face is central to the relationship, confinement and isolation were major constraints. Social workers operated with insecurity, difficulties accessing personal protective equipment, intensifying work, and adaptation to a new work dynamic. Conclusions: The social workers surveyed, although exhausted, expressed that they were resilient and able to quickly adapt to new practices, refusing to abandon the values and ethical principles of the profession. Moreover, in a context of great uncertainty, little information, fear, and even with few resources, they kept in mind the sense of mission and solidary commitment that defines the profession to ensure people's access to rights, well-being, and safety.
Keywords: COVID-19; Impact; Pandemic; Social Work.
A década de 2020 iniciou-se com uma crise sanitária de escala global, originada pelo novo coronavírus. Defendemos que não se tratou somente de uma crise de saúde ou sanitária, pois as suas origens e consequências ultrapassam esta dimensão, remetendo-nos para outras crises como a política, social, económica.
Em Portugal, o primeiro caso de COVID-19 foi registado a 2 de março de 2020. A 19 de março foi declarado o estado de emergência (posteriormente renovado duas vezes), tendo o Governo recorrido a várias medidas como o confinamento, quarentena, encerramento de diversos serviços entre outros. Antes da primeira morte causada pela COVID-19, foram adotadas medidas de mitigação, quer pelo Governo, quer pela população em geral, contrariamente à maior parte dos países da Europa Ocidental, que demoraram cerca de duas semanas após a primeira morte (Mamede et al., 2020). De acordo com Monteiro e Jalali (2022, pp. 17, 25):
“o Estado assumiu-se como o principal amortecedor do impacto económico da pandemia (...) a estratégia de recuperação da economia portuguesa assentou: i) no alinhamento das medidas de política económica e social com a evolução da situação sanitária; ii) no sucesso da estratégia de vacinação; iii) no papel de estabilizadores automáticos desempenhado pelos mecanismos de proteção social e pelos instrumentos complementares de flexibilização do tempo de trabalho e de apoio à redução de atividade; iv) numa abordagem fiscal (ao nível da despesa e da receita) relativamente conservadora”.
No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 foi anunciado pelo governo em fevereiro de 2020. Tratava-se de um homem vindo da Lombardia na Itália, região fortemente atingida pelo vírus. O governo brasileiro, não estabeleceu imediatamente uma política de enfrentamento à COVID-19 e contribuiu ainda para a propagação de um conjunto de informações anticiência. De acordo com Matos (2021), o governo acusou os media de exagerar sobre a COVID-19; relativizou a letalidade do vírus; não efetivou uma política de distanciamento social; defendeu o uso de medicações de comprovada ineficácia contra o vírus; e não incentivou estudos sobre a vacina e o uso de máscaras. Esta postura gerou um atraso em medidas efetivas de mitigação e contenção do vírus, contribuindo para que, ao final de 2020, o país contabilizasse cinco milhões de pessoas contaminadas e quase 160.000 mil óbitos.
Parafraseando, “enquanto Portugal concatenou esforços e medidas exitosas para evitar a propagação do vírus, o Brasil demonstrou ações e discursos divergentes, o que pode ser uma das causas para o fracasso no controle do contágio, além de gerar incerteza e confusão na população” (Antonelli-Ponti, 2020, p. 24). A diferenciação entre o cenário de trabalho profissional dos dois países foi posta, especialmente, pela condição socioestrutural do Brasil, somando-se a este processo um governo nacional que, durante todo o processo da pandemia, contribuiu para a desinformação, atraso na vacinação e ataques às ciências (Matos, 2021). Dessa forma, o país sofreu com a falta de políticas progressistas de combate à pandemia e de políticas de proteção social. No início de maio de 2020, Portugal apresentava 93 óbitos por milhão de habitantes de (e.g., em Espanha era de 510) e com o número de testes/milhão de habitantes dos mais elevados (Costa & Costa, 2020). Já o Brasil, em maio de 2020, contava com quase 30.000 mortes e com dificuldades expressivas na realização de testagem que geraram subnotificação dos casos. A restrição dos testes comprometeu a monitorização da evolução da pandemia, o planeamento de recursos e a avaliação da eficácia das medidas de controle, assim como a comparação com outras regiões e países (Prado et al., 2020).
Em Portugal, de acordo com Monteiro e Jalali (2022, p. 22), a pandemia:
“aumentou o prémio de empregabilidade para os mais qualificados e simultaneamente penalizou os mais jovens e os mais velhos, sobretudo aqueles com menor escolaridade e com vínculos de emprego mais instáveis. Teve também um efeito regressivo, penalizando principalmente os trabalhadores com salários mais baixos e as classes de menor rendimento”.
No Brasil, o quadro foi alarmante para os trabalhadores, uma vez que o país já vivenciava altos índices de desemprego e emprego informal. Devido à realidade nacional e à pressão social, o governo federal criou a renda básica emergencial, como medida de proteção social aos trabalhadores brasileiros. Em setembro de 2020, 43,6% dos agregados familiares do país haviam recebido o auxílio emergencial (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2020).
A pandemia veio evidenciar e acentuar as desigualdades sociais e económicas. Harvey (2020, p. 16) destacou que “o impacto econômico e demográfico da disseminação do vírus depende de fissuras e vulnerabilidades preexistentes no modelo econômico hegemônico”, neoliberal e globalizado. Similarmente, Sousa Santos (2020) referiu que a pandemia veio apenas agravar uma crise, que existia desde que o neoliberalismo (dominante do capitalismo) se tem imposto, sujeitando-se cada vez mais aos imperativos financeiros. Este autor identificou os grupos que, pelas suas especificidades, apresentavam uma maior vulnerabilidade na pandemia: mulheres; trabalhadores precários, informais; trabalhadores da rua; pessoas em situação de sem-abrigo ou populações de rua; moradores nas periferias pobres das cidades, bairros de lata; refugiados, imigrantes e indocumentados; pessoas portadoras de deficiência e pessoas idosas. A pandemia do coronavírus evidenciou, assim, processos históricos de desigualdades sociais, políticas e económicas internacionais, e assumiu contornos de uma pandemia de classe, género e raça (Harvey, 2020).
Inevitavelmente, esta pandemia teve um grande impacto nos profissionais de serviço social, na medida que os assistentes sociais têm o seu trabalho inscrito no âmbito da produção e reprodução da vida social. No seu trabalho quotidiano, o assistente social lida com situações singulares vivenciadas por indivíduos, famílias, grupos e segmentos da população, permeada pelas expressões da questão social, que, nesta conjuntura, se agravaram. Os assistentes sociais tiveram e têm de enfrentar necessidades cada vez mais complexas dos indivíduos durante a pandemia da COVID-19. Aliás, Mamede et al. (2020) referiram que se prevê uma crise socioeconómica como consequência dos efeitos austeros da pandemia no emprego e na perda de rendimentos.
São vários os estudos publicados que focaram o impacto da COVID-19 os profissionais de serviço social. Por exemplo, Banks et al. (2020, p. 569) referiu:
“Social isolation has increased, jobs have disappeared and some social services have been reduced. Social workers have struggled to continue to do their work – having to adapt and innovate to meet new needs and reprioritise the most urgent and important aspects of their roles.”
Ashcrof et al. (2022), recorrendo a uma amostra de assistentes sociais canadianos, identificaram as seguintes categorias no referido impacto: aumento da carga de trabalho; perda de emprego; novas reconfigurações no trabalho; reforma antecipada; preocupações com a saúde e segurança pessoal; assistentes sociais do sistema privado com menor número de atendimentos; responsabilidades relativas ao cuidar de familiares; o potencial de emprego dos recém-formados ficou mais limitado; e novas oportunidades de trabalho. Acresce a estas, complexidade crescente nas situações vividas pelos beneficiários (aumento de violências, de problemas mentais e adições); desafios com a transição para o atendimento virtual; constrangimentos à prática profissional com a transição para o atendimento virtual; adaptações para a realização de atendimentos presenciais; impacto no bem-estar dos profissionais, positivos (horários flexíveis, economia de tempo, melhor equilíbrio vida profissional/vida pessoal, diminuição de despesas) e negativos (dificuldades na conciliação da vida pessoal/vida profissional; maior angústia e stress).
Num curto espaço de tempo, estes profissionais foram forçados a adaptar e a reinventar o seu modo de trabalho, tendo sempre:
“dois objetivos omnipresentes: por um lado, ajudar as pessoas e os coletivos a sair da situação de carência em que ficaram ou que foi agravada pela crise: por outro lado, assumir-se como recurso para a sua autonomização como cidadãos responsáveis” (Carmo, 2021, p. 19).
Um estudo realizado em Portugal, em julho de 2020, com assistentes sociais portugueses:
“destaca as dificuldades nos contatos com os utentes, o aumento das tensões internas, sentimentos de incerteza e de insegurança, as dificuldades em lidar com uma situação nova e desconhecida, as dificuldades inerentes ao teletrabalho, com incidência, também, na vertente da conciliação entre a atividade profissional e a vida familiar (…). O funcionamento de equipamentos e serviços sociais dependeu de um número limitado de profissionais, marcados pelo cansaço e exaustão, associado às dificuldades de uma não perceção atempada da gravidade da situação e conhecimento das orientações e medidas da tutela, aliada à pouca autonomia na gestão e decisão sobre medidas a adotar” (Cardoso et al., 2020, p. 56).
Devido aos requisitos de distanciamento social da pandemia, os assistentes sociais passaram por mudanças transformadoras na sua prática, com a rápida aceitação de tecnologias virtuais (Hakak et al., 2022; Kingstone et al., 2022; Mishna et al., 2021; Okafor & Walla, 2021; Pascoe, 2022).
Por isso, entendemos como essencial a aproximação com a realidade e particularidades vivenciadas pelo conjunto de assistentes sociais e portugueses e brasileiros entrevistados. Posto isto, o processo de pesquisa foi organizado em três eixos de análise: 1) impacto da pandemia nos beneficiários diretos do serviço social; 2) dificuldades, desafios e novas práticas e metodologias na intervenção social; 3) conciliação vida pessoal/vida profissional e preocupações futuras.
O estudo foi exploratório e descritivo, não tendo como pretensão a compreensão total e completa sobre a realidade, mas uma aproximação a essa realidade (Minayo et al, 2011).
Foram realizadas 37 entrevistas semiestruturadas a assistentes sociais portugueses e brasileiros através da plataforma zoom (Portugal) e de forma presencial (Brasil). A recolha de dados foi efetuada no período decorrido entre dezembro de 2021 e abril de 2022. A duração das entrevistas realizadas variou entre 20 – 50 minutos e foi realizada através de um roteiro semiestruturado, contendo questões que abarcaram a organização do trabalho, demandas, requisições, limites e possibilidades do trabalho profissional no contexto da pandemia. Os participantes foram informados do âmbito e objetivo do estudo, tendo sido assegurado o anonimato e confidencialidade dos dados. Importa ressalvar que os princípios éticos da Declaração de Helsínquia para a investigação foram considerados em todos os momentos de investigação. Adicionalmente, foi criado um endereço de correio eletrónico para esclarecimento de dúvidas que pudessem surgir.
As entrevistas foram efetuadas com recurso a um gravador e o seu conteúdo foi transcrito de forma literal após a finalização de cada entrevista, em formato digital. Para evitar a identificação dos participantes foi feita a codificação de “Assistente social 1” a “Assistente social 37”.
Para o processo de análise dos dados recolhidos, as duas investigadoras efetuaram a leitura, a codificação das unidades de análise e discutiram as categorias. A análise de conteúdo foi realizada à luz de Bardin (2011), em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento e interpretação dos resultados obtidos. Não foi utilizado qualquer software de análise qualitativa de dados. A interpretação dos dados teve por assento o método dialético, sublinhando-se que o consenso não existe e ainda que a ciência se constrói numa relação dinâmica entre a razão dos que a exercem e a experiência que surge da realidade concreta (Minayo et al., 2011).
As investigadoras são assistentes sociais e, nesta ótica, possuem conhecimentos próprios sobre como uma pandemia pode agravar as condições de trabalho destes profissionais. Além disto, nas relações e interações que desenvolveram com outros profissionais da área, aperceberam-se nas suas narrativas das inúmeras consequências da pandemia no contexto profissional e pessoal.
Por outro lado, as investigadoras têm desenvolvido pesquisas no âmbito da relação entre o exercício profissional dos assistentes sociais e problemas de saúde. No seu trabalho quotidiano, o assistente social lida com situações singulares vivenciadas por indivíduos, famílias, grupos e segmentos da população permeada pelas expressões da questão social e que, na conjuntura da pandemia, se agravaram.
Nesta lógica, as investigadoras levaram a efeito um intercâmbio interinstitucional, de carácter internacional, entre duas instituições de ensino de serviço social. Desenvolveram a presente pesquisa que visou compreender os desafios do trabalho do assistente social na pandemia da COVID-19, partindo do pressuposto de que tanto no Brasil, como em Portugal, falamos de uma profissão cujo trabalho está inscrito no âmbito da produção e reprodução da vida social.
A técnica de amostragem utilizada foi de conveniência. Como critério de inclusão foram considerados assistentes sociais supervisores de estágio vinculados aos cursos de serviço social da Universidade Federal de Juiz de Fora e à Universidade Lusófona do Porto; e de exclusão assistentes sociais supervisores de estágio vinculados a estes cursos que, no contexto da pandemia estivessem a desenvolver ações fora do escopo do trabalho profissional do assistente social. A estratégia de mobilização dos participantes na pesquisa foi efetuada através do envio de correspondência para os supervisores de estágio. Uma vez aceite a participação, realizou-se o agendamento da entrevista. Assim, a presente amostra foi composta por 37 assistentes sociais, designadamente 17 brasileiros e 20 portugueses.
Como se pode observar na Tabela 1, a maioria dos inquiridos (97,3%) era do sexo feminino e 2,7% do sexo masculino, com uma média de idades de 44,5 anos (DP = 26,8). A habilitação académica mais frequente foi a licenciatura (64,9%) e no que respeita à atividade profissional possuíam, em termos médios, 18 anos de experiência. Os resultados foram similares nos assistentes sociais portugueses e brasileiros, à exceção de duas variáveis: modalidade de trabalho (presencial, teletrabalho ou misto) e se estiveram, ou não positivos ao COVID-19. A percentagem de inquiridos brasileiros que em tempo de pandemia estiveram sempre em regime presencial foi superior quando comparada com os inquiridos portugueses (47,1% vs. 35,0%); a percentagem dos assistentes sociais portugueses inquiridos que estiveram numa modalidade mista (teletrabalho e presencial) foi superior à dos inquiridos brasileiros (65,0% vs. 29,4%). Enquanto que 70,6% dos assistentes sociais brasileiros testaram positivo ao COVID-19, esse número baixou para 45,0% nos assistentes sociais portugueses inquiridos. Estas disparidades poderão refletir as diferentes medidas tomadas pelos dois países, como tivemos oportunidade de indicar anteriormente.
Tabela 1 Caracterização da Amostra (N = 37) | ||||||
A.S. Brasileiros | A.S. Portugueses | TOTAL | ||||
n | % | n | % | n | % | |
Sexo |
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Feminino | 17 | 100 | 19 | 95,0 | 36 | 97,2 |
Masculino | 0 | 0 | 1 | 5,0 | 1 | 2,7 |
Estado Civil |
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Solteiro(a) | 4 | 23,5 | 5 | 25,0 | 9 | 24,3 |
Casado (a)/União de Fato | 12 | 70,6 | 13 | 65,0 | 25 | 67,5 |
Viúvo(a) | 1 | 5,9 | 1 | 5,0 | 2 | 5,5 |
Divorciado/Separado(a) | 0 | 0 | 1 | 5,0 | 1 | 2,7 |
Idade |
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[20–30[ | 1 | 5,9 | 3 | 15,0 | 4 | 10,8 |
[30–40[ | 7 | 41,0 | 3 | 15,0 | 10 | 27,1 |
[40–50[ | 4 | 23,7 | 7 | 35,0 | 11 | 29,7 |
[50–60[ | 5 | 29,4 | 4 | 20,0 | 9 | 24,3 |
≥ 60 | 0 | 0 | 3 | 15,0 | 3 | 8,1 |
Habilitações Académicas |
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Licenciatura | 11 | 64,7 | 13 | 65,0 | 24 | 64,8 |
Mestrado | 5 | 29,4 | 6 | 30,0 | 11 | 29,7 |
Doutoramento | 1 | 5,9 | 1 | 5,0 | 2 | 5,5 |
Pós-Graduação | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Tempo de exercício profissional em serviço social |
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1–5 anos | 0 | 0 | 3 | 15 | 3 | 8,1 |
6–10 anos | 4 | 23,5 | 4 | 20,0 | 8 | 21,6 |
≥ 11 anos | 13 | 76,5 | 13 | 65,0 | 26 | 70,3 |
Serviço em que trabalha |
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Público | 14 | 82,3 | 8 | 40,0 | 22 | 59,5 |
Privado | 3 | 17,6 | 12 | 60,0 | 15 | 40,5 |
Tempo de exercício profissional na mesma instituição |
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1–5 anos | 6 | 36,0 | 4 | 20,0 | 10 | 27,1 |
6–10 anos | 4 | 23,0 | 5 | 25,0 | 9 | 24,3 |
≥ 11 anos | 7 | 41,0 | 11 | 55,0 | 18 | 48,6 |
Modalidade de trabalho durante a pandemia |
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Presencial | 8 | 47,1 | 7 | 35,0 | 15 | 40,5 |
Teletrabalho | 4 | 23,5 | 0 | 0,0 | 4 | 10,9 |
Mista | 5 | 29,4 | 13 | 65,0 | 18 | 48,6 |
Teste Positivo ao COVID |
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Sim | 13 | 70,6 | 9 | 45,0 | 22 | 59,5 |
Não | 5 | 29,4 | 10 | 55,0 | 15 | 40,5 |
Nota. A. S. = Assistente social.
Este questionário englobou as seguintes variáveis: idade, sexo, estado civil, habilitações literárias, anos de serviço, tipo de serviço em que trabalha, tempo de serviço profissional na mesma instituição e modalidades de trabalho durante a Pandemia.
A entrevista foi semiestruturada, contendo seis questões abertas, designadamente:
De modo a facilitar a apresentação e discussão dos resultados, optámos por apresentá-los por resposta às questões efetuadas no questionário, agregando as narrativas em categorias da análise do conteúdo.
Questão 1. Qual o impacto que a pandemia teve nos cidadãos com quem trabalha?
As categorias encontradas a esta questão foram três: agudização dos problemas sociais, agravamento dos problemas de saúde e aumento de pedidos de apoios sociais.
Na agudização dos problemas sociais, os assistentes sociais salientaram o aumento do desemprego, a diminuição dos rendimentos, o aumento da violência intrafamiliar, o aumento do isolamento social, o aumento da vulnerabilidade social e o aumento da pobreza. Foram exemplo disso as seguintes afirmações:
“Existiu um agravamento dos problemas sociais, eles agudizaram-se porque as pessoas ficaram mais desprotegidas” (Assistente social 13 – Portugal).
“Famílias empobrecidas, tiveram que acolher outros membros da família comprometendo e dividindo a renda que já era insuficiente” (Assistente social 7 – Brasil).
Estes dados eram por nós esperados, pois, de acordo com Costa (2020), a crise sanitária veio aumentar, em Portugal, o fosso das desigualdades em áreas como a saúde, educação ou o trabalho. Entre o final de fevereiro e o final de abril, o desemprego registado em Portugal aumentou cerca de 24,0% (Mamede et al., 2020). No Brasil, encontramos 11,9 milhões de desempregados e quase 28 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza (IBGE, 2022). Alves e Siqueira (2020) referiram que, no Brasil, ocorreu um pacote de contenções que justificaram demissões de trabalhadores, redução de cargas horárias de trabalho, acordos patronais (trabalhador doméstico), estratégias de teletrabalho, agregado à revisão e redução de salários. Aliás, a agudização dos problemas sociais ocorreu, de uma forma em geral, globalmente (Abrams & Szefler, 2020).
Face ao agravamento dos problemas de saúde, os assistentes sociais inquiridos mencionaram o aumento de problemas de saúde mental, aumento do stress, alterações de rotina, dificuldades de acesso aos cuidados médicos e medo generalizado. Estes dados estão em consonância com várias publicações que atestaram que os problemas da saúde mental aumentaram durante a pandemia (Abrams & Szefler, 2020; Brooks et al., 2020; Usher et al., 2020). Também de acordo com um estudo da Universidade Católica Portuguesa, elaborado em 2021, as principais razões que afetaram os utentes das IPSS foram a situação de isolamento, perdas relacionais e de sociabilização, desgaste, stress e ansiedade, tristeza e medo (Martins & Pinto, 2021).
“É todo um impacto negativo principalmente na saúde mental das pessoas. As pessoas estão em volta de depressões, receios e medos. Existiu sim, um agravamento dos problemas sociais, por exemplo, quem trabalhava sem descontos não tinha como justificar e receber o tempo que ficavam em isolamento.” (Assistente social 10 – Portugal).
“Considero sim que houve o agravamento das expressões da questão social, principalmente no que se refere ao adoecimento, adoecimento mental também, no aspecto da depressão, estresse” (Assistente social 8 – Brasil).
Os assistentes sociais inquiridos ainda referiram nesta categoria a necessidade que os cidadãos tiveram de aumentar os pedidos de apoio social, consubstanciando-se num aumento de pedidos alimentares, aumento de pedidos para medicação e apoio para aceder às novas tecnologias. Esta categoria surgiu na sequência das categorias anteriores; isto é, na sequência da agudização dos problemas sociais e do agravamento dos problemas de saúde, os pedidos de apoio social aumentaram. Vejam-se as seguintes declarações:
“Passaram a haver pedidos para alimentação, o que já não acontecia há algum tempo, portanto as necessidades foram aos níveis mais básicos” (Assistente social 5 – Portugal).
“O empobrecimento massivo da população, trouxe às portas da assistência social pessoas que nunca haviam necessitado dos seus serviços. A busca por serviços de saúde (psicologia e psiquiatria, principalmente), cestas básicas, auxílio moradia...” (Assistente social 3 – Brasil).
Questão 2. Quais as consequências que a pandemia trouxe ao seu trabalho?
Para esta questão foram encontradas duas categorias: reorganização de serviço e intensificação de trabalho.
Na reorganização de serviço foram referidos: a suspensão de algumas respostas sociais; restrição de atendimentos sociais presenciais; suspensão de atividades de grupo e de reuniões de equipa presenciais; diminuição do trabalho em equipa (trabalho mais individualizado); dificuldades de trabalhar em parceria; teletrabalho; aumento de contactos telefónicos; e reorganização de espaços físicos. Consideraram ainda que a intervenção realizada foi mais imediata e de emergência:
“As situações são cada vez mais emergenciais e de emergência… e temos de responder no imediato…no aqui e agora… não temos tempo para refletir sobre a nossa prática… a situação daquela pessoa tem que ficar resolvida no imediato, naquele momento, e isso traz-nos muita pressão.” (Assistente social 1 – Portugal).
“A pandemia trouxe mudanças e adaptações a rotina da instituição com a incorporação do trabalho remoto; perda da referência profissional, tendo o assistente social que atuar em diversos setores; e atuação em plantões” (Assistente social 6 – Brasil).
Na intensificação de trabalho, encontrámos nos discursos dos assistentes sociais inquiridos a maior carga de trabalho, o aumento de trabalho informatizado, o aumento da burocratização, o aumento de pedidos de apoio social, a atualização constante de nova legislação e das recomendações da área da saúde e o aumento da pressão laboral. Vejam-se as seguintes afirmações:
“O volume de trabalho aumentou muito; houve um aumento de portarias e decretos, estavam constantemente a sair coisas novas para implementar; planos de contingência que tínhamos que atualizar constantemente; havia mapas e registos para enviar para a segurança social com o número de infetados; trabalhar com equipas e com pessoas que tinham muito medo; foi necessário fazer um grande trabalho de supervisão emocional. Senti neste período que a equipa estava ainda mais dependente de mim …” (Assistente social 5 – Portugal).
“O principal desafio é o espaço físico para ter condições de atender todos os usuários com maior qualidade e necessidade de telefone, celular, internet, para agilizar os processos e requerimentos” (Assistente social 7 – Brasil).
A pandemia trouxe desafios à prática do serviço social para conseguir dar resposta às necessidades da população, com um grande aumento da carga de trabalho (Ashcroft et al., 2022; Redondo-Sama et al., 2020). De acordo com Bracons (2020, p. 2) “os assistentes sociais são desafiados a repensar as suas maneiras de trabalhar e refletir sobre novas estratégias de intervenção, relação e comunicação face ao cenário em que nos encontramos, exigindo múltiplas adaptações”, antecipando-se um maior esforço profissional. Esta intensificação do trabalho referenciado pelos inquiridos foi também partilhada por Carvalho (2020, p. 1095) quando afirmou “Os serviços públicos tornaram-se escassos e encontram-se superlotados. O aumento das necessidades leva a que os profissionais assumam múltiplos papéis, realizando tarefas burocráticas, sobretudo na linha da frente, para responder a necessidades imediatas. Esta acumulação de tarefas desqualifica outras atividades, tais como o aconselhamento ou advocacia e, a integração na comunidade”, o que nos remete para a identificação das dificuldades na intervenção profissional, que trataremos na questão seguinte.
Questão 3. Consegue identificar as principais dificuldades na intervenção profissional durante a pandemia?
Encontrámos nas respostas a esta questão três categorias: dificuldades no relacionamento com os cidadãos, insuficiência de recursos e desgaste profissional.
Nas dificuldades de relacionamento com os cidadãos, os profissionais inquiridos referiram: as dificuldades de comunicação, a perda de conhecimentos sobre a realidade social dos cidadãos, a existência de um relacionamento mais distante, com interferência na relação de confiança e empatia e as dificuldades em garantir a privacidade e o sigilo profissional. Transcrevemos duas afirmações:
“Eu tive muitas dificuldades em me manter próxima das pessoas a quem fazia atendimento, o olho no olho ajuda muito a manter uma boa qualidade de relação…o isolamento não é compatível com o serviço social” (Assistente social 7 – Portugal).
“Distanciamento dos usuários, tendo em vista que a atuação do assistente social requer essencialmente presencialidade; ausência de equipamentos tecnológicos para o trabalho remoto” (Assistente social 11 – Brasil).
São vários os estudos que identificaram as dificuldades de relacionamento com os cidadãos na prática do serviço social, durante a pandemia. Por exemplo, Banks et al. (2020), numa pesquisa efetuada com assistentes sociais, indicou as preocupações éticas destes profissionais relacionadas com a comunicação através das novas tecnologias, uma vez que colocam em causa a relação de confiança e de privacidade. Também Kingstone et al. (2022, p. 2050), numa pesquisa com assistentes sociais, mencionaram: “many feared missing important factor cues due to their partial view of a servisse user’s reality”. Numa outra pesquisa, os assistentes sociais inquiridos manifestaram a sua preocupação com o facto de a pandemia ter diminuído a qualidade da relação com os beneficiários da ação social, ameaçando os valores e a ética do serviço social, que se baseia no relacionamento (Pascoe, 2022).
Quanto aos recursos insuficientes, encontrámos a verbalização de dificuldades iniciais de acesso a equipamento de proteção individual, recursos económicos insuficientes para as necessidades, dificuldades de articulação com outros serviços/colegas e recursos humanos insuficientes. Eis algumas afirmações:
“A articulação com as instituições também ficou mais difícil pela falta de recursos humanos, por causa de muita gente que estava com medo ou doente, e isso tudo trouxe grandes desafios” (Assistente social 14 – Portugal).
“Tivemos desafios em relação ao espaço físico para ter condições de atender todos os usuários com qualidade e a falta de atendimento presencial prejudicou àqueles que dependiam de orientação específica de alguns serviços da rede socio assistencial e previdenciário” (Assistente social 16 – Brasil).
A este nível, também Ashcroft et al. (2022), no seu estudo com assistentes sociais, referiram que uma das dificuldades sentidas por estes profissionais foi a falta de recursos económicos suficientes para fazer face às necessidades da população. A dificuldade de articulação com serviços/colegas foi relatada por Kingstoneet al. (2022) que acrescentou que essas dificuldades contribuem para um sentimento de isolamento por parte dos assistentes sociais.
Face ao desgaste profissional, os assistentes sociais inquiridos manifestaram um grande cansaço emocional, dificuldades em manter o equilíbrio emocional e um aumento de ansiedade. São inúmeros os estudos que confirmam que o contexto de pandemia colocou os assistentes sociais em risco de experienciar burnout (Ashcroft et al., 2022; Greenberg, 2020; Guadalupe et al., 2022; Martínez-López et al., 2021; Mendes et al., 2021; Peinado & Anderson, 2020). A título de exemplo vejam-se as seguintes afirmações dos assistentes sociais inquiridos no presente estudo:
“Estava assoberbada de coisas para fazer; a ansiedade que estávamos a vivenciar era muito grande… desconhecíamos o que ia acontecer (…) Sem eu me aperceber, comecei a ficar mais apreensiva… mais cansada, o stress de não sabermos que situações vão aparecer e temos que as resolver; tive de procurar ajuda médica” (Assistente social 1 – Portugal).
“Tive medo de falhar, tive medo de não conseguir corresponder às expectativas ou às exigências todas...estava muito cansada e o peso da responsabilidade era muito grande” (Assistente social 20 – Portugal).
“A precarização cada vez maior das condições de trabalho e a falta de reconhecimento do profissional assistente social tem gerado cada vez mais medo e incertezas. As instituições tem tido tendência autoritária, verticalizadas e pouco favoráveis ao diálogo” (Assistente social 9 – Brasil).
“Vivenciei o distanciamento dos familiares e amigos, impossibilidade de realizar atividades culturais e de lazer, agravamento do processo de adoecimento psíquico, crises de ansiedade e Síndrome de Burnout” (Assistente social 17 – Brasil).
Somente os assistentes sociais brasileiros referiram as dificuldades sentidas no fornecimento de informações/orientações/diretrizes relativas a comportamentos de prevenção da COVID-19 por ausência de água canalizada por parte dos cidadãos. Também somente os assistentes sociais brasileiros referiram poucos recursos tecnológicos para fazer face às necessidades sentidas. No país, mais de 40 milhões de pessoas não tem acesso à internet (IBGE, 2019), o que trouxe impactos num momento de incorporação massiva da tecnologia, para aceder aos serviços públicos e sociais. Da mesma forma, somente os assistentes sociais brasileiros fizeram referência à conjuntura política, fazendo menção ao retrocesso das políticas públicas nacionais, com uma menor intervenção do estado numa altura de uma crise pandémica:
“O principal desafio é a ausência e omissão do Estado no que se refere a ações e políticas públicas que, de fato, atendam às necessidades da população” (Assistente social 9 – Brasil).
“algo que também causou muito impacto no trabalho foi o agravamento das questões sociais, condição imposta pela pandemia e por esse desgoverno à população brasileira, principalmente aos sujeitos em maior vulnerabilidade” (Assistente social 17 – Brasil).
Questão 4. Quais as práticas e metodologias de intervenção que utilizou para ultrapassar as dificuldades sentidas neste período?
A utilização das novas tecnologias para realizar atendimentos e reuniões, bem com o aumento dos contatos telefónicos, surgiu nas respostas dos inquiridos:
“Começámos a utilizar as ferramentas online. Eu, por exemplo, comecei a usar a videochamada e videoconferência e isso acabou por facilitar a intervenção. Usamos muito mais o telefone” (Assistente social 14 – Portugal).
“Uma estratégia de intervenção importante foram as reuniões virtuais com os usuários, dando a continuidade ao vínculo, as reuniões com outras instituições da rede e a comunicação via WhatsApp para que o mínimo contato não fosse perdido com os usuários” (Assistente social 13 – Brasil).
É vasta a literatura que referencia que as novas tecnologias contribuíram para que os assistentes sociais desempenhassem as suas funções, ainda que remotamente (Ashcroft et al., 2022; Barsky, 2020; Carvalho, 2020; Mishna et al., 2021; Pascoe, 2022).
A intervenção em rede também surgiu como uma categoria, na medida em que os assistentes sociais inquiridos referiram que se esforçaram para manter um trabalho em parceria e encontrar novos parceiros. Referiram o trabalho em rede e em parceria como estratégico para conseguir dar resposta a problemas concretos da população.
A última categoria foi respeitante ao atendimento ao cidadão, com a subcategoria proatividade, na medida em que os assistentes sociais consideraram que passaram a procurar um maior contacto com os cidadãos com os quais trabalhavam, com uma atenção redobrada ao acolhimento e à escuta ativa.
Questão 5. As alterações sentidas alteraram a conciliação da vida pessoal/vida profissional?
Na conciliação vida familiar/vida profissional apenas seis assistentes sociais portugueses e nenhum assistente social brasileiro referiram que não sentiram alterações na conciliação destas duas áreas. Todos os restantes profissionais salientaram que sentiram dificuldades nesta conciliação, havendo uma maior sobrecarga para conseguir conciliar as duas áreas. Foi referido que o teletrabalho veio dificultar a separação entre a vida familiar/vida profissional, veio alterar as rotinas (profissionais e familiares) e a pandemia trouxe uma maior necessidade de dar apoio à família (muito por conta do encerramento dos serviços). Ashcroft et al. (2022), na sua pesquisa, concluíram que alguns assistentes sociais tiveram de deixar de trabalhar temporariamente porque não conseguiram conciliar a vida familiar/vida profissional. Estas dificuldades encontram-se espelhadas nas seguintes afirmações dos inquiridos:
“A conciliação entre vida pessoal e vida laboral foi muito difícil; eu tive 3 semanas sem ver a minha filha (choro…)” (Assistente social 5 – Portugal).
“Onde começa a vida pessoal e acaba a vida pessoal e onde começa a vida profissional e acaba a vida profissional, não havia limites” (Assistente social 17 – Portugal).
“Jornadas de trabalho extenuantes, tendo em vista que o trabalho remoto se desenvolve em meio aos cuidados com a família e a casa, sobrecarregando, especialmente as mulheres e repercutindo inclusive no adoecimento físico e mental” (Assistente social 9 – Brasil).
Questão 6. Quais são as suas grandes preocupações ou perspetivas em relação ao futuro?
Em ambos os grupos dos assistentes sociais (portugueses e brasileiros) surgiu o tema da crise económica relacionado com verbalização de que houve um aumento das desigualdades sociais, económicas e problemas mentais da população e agravamento dos problemas sociais. Estas preocupações foram também partilhadas pelos assistentes sociais do Reino Unido: "Participants shared concerns about potential financial impacts of COVID-19, these concerns were often based on past experience in times of austerity and described with reference to implications for vulnerable members of society” (Kingstone et al., 2022, p. 2055). Eis algumas partilhas dos assistentes sociais por nós inquiridos:
“Depois da pandemia, virá uma crise económica, que trará grandes dificuldades ao serviço social, preocupa-me a emergência de “novos pobres” (Assistente social 12 – Portugal).
“Eu acho que a gente tem um desafio cultural, ideológico forte para lidar e tem o desafio econômico do empobrecimento da população. Hoje, é uma preocupação institucional a questão da crise econômica e a condição das pessoas para continuar acessando os serviços de saneamento básico” (Assistente social 2 – Brasil).
Já a categoria trabalho profissional surgiu da análise de que houve necessidade de diminuir a burocratização e necessidade urgente de retomar os atendimentos sociais presenciais. A este nível partilhamos as seguintes afirmações:
“Preocupa-me se pensarem que tudo se resolve à distância, e um verdadeiro assistente social para estar e fazer a diferença na vida das pessoas deve estar presencialmente” (Assistente social 17– Portugal).
“Trabalhando de casa ficou difícil a gente pensar algumas estratégias que pudesse ultrapassar a realidade. A minha preocupação é retomar os trabalhos coletivos que fazíamos antes e poder reestruturar o relacionamento com os usuários” (Assistente social 18 – Brasil).
Nas respostas, surgiu também a indicação de que houve necessidade de reforçar o trabalho em rede. Aliás, esta categoria já tinha surgido nas respostas a duas questões da nossa pesquisa, relativa às principais dificuldades sentidas por estes profissionais e às práticas e metodologias para ultrapassar essas mesmas dificuldades, o que nos remete, parece-nos, para esta ser uma questão central na prática dos assistentes sociais (portugueses e brasileiros). Veja-se, a título de exemplo:
“Os serviços/as equipas devem fazer uma reflexão sobre a eficácia da intervenção social e sobre a eventual reorganização dos serviços e a importância de encontrar respostas mais eficazes. Falo do reforço do trabalho em rede” (Assistente social 4 – Portugal).
“Reforçar a articulação permanente com a rede socio assistencial (proteção básica e especial da assistência social), atenção primária de saúde, defensoria pública e INSS” (Assistente social 13 – Brasil).
Como podemos constatar, os assistentes sociais inquiridos quando questionados sobre “Quais são as suas grandes preocupações ou perspetivas em relação ao futuro?” não referiram preocupações pessoais, mas sim preocupações mais dirigidas às pessoas com as quais trabalham, podendo-se talvez refletir na seguinte afirmação de uma assistente social inquirida:
“o medo de ficar infetada; eu tinha de fazer visitas domiciliárias… mesmo com medo eu ia… as pessoas não podiam ficar desprotegidas” (Assistente social 20 – Portugal).
É interessante que também o estudo de Kingstone et al. (2022) chegue à mesma conclusão. Apesar da adversidade do contexto pandémico, os assistentes sociais mostraram-se resilientes a manter a sua prática profissional de acordo com os valores e princípios centrais no serviço social.
No ano de 2020, com o anúncio da pandemia da COVID-19 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o mundo precisou se reorganizar devido ao alto grau de transmissão e letalidade do vírus.
O serviço social, enquanto profissão inserida na divisão sociotécnica do trabalho e profissional essencial na execução das políticas sociais, sofreu consequências desse processo de reorganização. O serviço social necessitou também de reorganizar a sua atuação, se adaptar às novas exigências profissionais e construir estratégias de intervenção profissional tendo em vista os impactos da pandemia nos sujeitos com o qual atuam. Neste contexto grande incerteza e de elevado risco, como é uma pandemia, os assistentes sociais foram desafiados a prestarem a sua prática profissional, enquanto serviço essencial. A perceção dos assistentes sociais neste impacto revela-se especialmente importante por serem profissionais na linha da frente e que tendencialmente trabalham com a população socialmente mais vulnerável.
A pesquisa realizada demonstrou que os assistentes sociais inquiridos, apesar de estarem em países com processos históricos diferenciados, sofreram impactos similares nas condições de trabalho e consequências e desafios gerados pela pandemia idênticos, incluindo a reorganização do trabalho, incorporação da tecnologia, agravamento das condições de vida da população e intensificação do trabalho. Aliás, estas similaridades remetem-nos para a questão da pandemia e as suas consequências socioeconómicas serem um fenómeno globalizado.
Os assistentes sociais inquiridos (portugueses e brasileiros) foram perentórios ao afirmar que a sua perceção foi de que houve um agravamento dos problemas sociais, realçando o aumento de dificuldades económicas, os problemas de saúde mental, o desemprego, o isolamento social e os conflitos intrafamiliares. Como consequências diretas da pandemia, na sua prática profissional, relataram um agravamento das condições de trabalho, ressaltando a maior carga de trabalho e a necessidade de reorganizar o serviço, recorrendo às novas tecnologias para se aproximarem das pessoas, bem como a uma maior utilização da intervenção em rede. A vida pessoal destes profissionais também foi afetada, mencionando um aumento das dificuldades na conciliação da vida familiar com a vida profissional.
Apesar de todas as dificuldades sentidas pelos assistentes sociais, que se consubstanciou num desgaste emocional e físico, foi notório ao longo das entrevistas que estes tiveram continuamente presente o sentido de missão e de compromisso solidário que define a profissão. Num contexto de grande incerteza, de pouca informação, de medo e com poucos recursos, embora exaustos, recusaram-se a abandonar os valores e princípios éticos da profissão, bem como as suas funções de assegurar o acesso das pessoas aos direitos, ao bem-estar e à segurança.
Agradecimentos | Acknowledgements: Os autores agradecem a contribuição da Professora Carla Carvalho, da Professora Eva Chaves e da Professora Ana Maria Ferreira na recolha de dados para o presente questionário. Os autores gostariam, ainda, de agradecer a todos os participantes deste estudo| The authors are grateful for the contribution of Professor Carla Carvalho, Professor Eva Chaves and Professor Ana Maria Ferreira in collecting data for this questionnaire. The authors would also like to thank all the participants in this study.
Conflito de interesses | Conflict of interest: Os autores declaram que não houve conflitos de interesse | The authors declare that there were no conflicts of interest.
Fontes de financiamento | Funding sources: Não se aplica | Does not apply.
Contributos | Contributions: As duas autoras participaram igualmente na elaboração e aprovação do manuscrito |The two authors equally participated in the elaboration and approval of the manuscript.
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